No canto da sala resta uma
cadeira vazia, onde ela sentava, com um terço na mão, a assistir os programas
religiosos da televisão. Dali ela prestava atenção em tudo que acontecia na
casa. Dirigia tudo, dava ordens a todos, conduzia tudo a seu modo, à sua mania.
O que comer, o que lavar, o que engomar.
De vez em quando batia à porta um
vendedor, um pedinte. Batiam porque sabiam que ali seriam atendidos. Vó, hei
vó! Ela sempre resmungava: - agora arranjei mais esse neto. Quem via a cara
carrancuda não imaginava a alma caridosa que ela carregava. Era assim na
Fábrica Santa Isabel, onde ela trabalhou durante a juventude, era assim na Rua
César Aboud, onde ela viveu boa parte da sua vida, onde ela criou as filhas
Dora, Concita, Lúcia, Célia e Ana Amélia, era assim no Cohatrac. A caridade
sempre a acompanhava onde ela fosse. Agora, com ela estará ao lado de Deus,
nosso Senhor.
Por isso o pedinte ia lhe pedir
comida, roupa, uma moedinha. O verdureiro ia lhe oferecer verduras fresquinhas.
O peixeiro batia à porta para lhe oferecer o melhor peixe de São José de
Ribamar, o melhor marisco. Para variar, ela sempre botava defeito em tudo e
depois comprava de todos. Todos sabiam, se não oferecessem qualidade ela não
compraria. Depois de ver os produtos e aprová-los, ela voltava à cadeira e
retirava de um saco plástico que ficava embaixo da almofada o dinheiro
suficiente para pagar o que ela queria.
Assim era a Julieta Rufina Corrêa
que eu conheci. Gostava de tudo fresquinho, de boa qualidade e aparência. Nada
de peixe fofó (assim ela chamava o peixe que não estava fresco), nada de
verduras murchas, nada de mariscos miúdos ou mal apresentados. Para ela,
comprar de vendedores ambulantes tinha limites. Nunca esqueci um dia que
estávamos na nossa casa, no Cohatrac 4, quando passou um ambulante vendendo
pizzas e uma das suas filhas o chamou e comprou alguns pedaços. Quando ela
entrou em casa a oferecer pedaços de pizzas para as crianças, foi prontamente
advertida pela mãe que lhe disse: - aqui nesta casa, quando queremos pizzas
telefonamos para a pizzaria, solicitamos e eles nos trazem pizzas inteiras, não
compramos pedaços, nem de vendedores de rua. Ela era assim, tinha os seus
limites, tinha os seus princípios e eu aprendi a respeitá-los.
A princípio eu a chamava de dona
Julieta, era apenas o namorado da sua filha. Depois que me tornei genro, ou mesmo
um filho – creio que como ela só tinha filhas, me considerava um filho e me
tratava como tal. Então eu passei a lhe chamar de Juju e, mais recentemente, eu
só a chamava de Meu Amor. Julieta era uma mulher de pulso firme, de irmãos a
bisnetos todos a amavam, mas tinham, sobretudo, respeito por ela. Era a
matriarca da família Corrêa.
Gostava de fartura e de
movimento. Era festeira, gostava de passear, visitar os amigos, as amigas. Até
os setenta e uns, saía sozinha para assistir missa em várias igrejas de São
Luís. O peso dos oitenta a deteve mais em casa. Gostava de acordar cedo e lavar
o quintal, lavar roupas, fazer o café da
manhã. Essa rotina ela fez enquanto a idade e a saúde lhe permitiram.
Era, sobretudo, minha amiga, Meu
Amor, passamos muito bons momentos juntos. Gostava de tirar onda com ela só
para provocar a sua reação, seus insultos e ver os risos de quem nos assistia
“brigando”. Juju era divertida nossas almas compartilhavam de gostos
semelhantes. Quando morávamos na casa do Cohatrac 4, muitas vezes, íamos eu,
Célia, ela e os meus filhos para São José de Ribamar ou para a Raposa comprar
peixe. Arrematávamos baldes de peixe de algum vendedor, voltávamos para casa e
ela cozinhava o peixe e nós fazíamos a festa.
Quando eu e a Célia nos casamos,
fomos morar no Maiobão. Ela foi passar um final de semana conosco e resolvemos
acordar cedo e irmos juntos à feira. Eu fui funcionário da Ceasa e fui o
técnico designado pela Diretoria da empresa para preparar a inauguração da
feira do Maiobão. Mas, eu nem me lembrava disso naquela época, havia passado
uns anos. Quando chegamos à feira, fomos a um Box comprar galinha, mas para a
nossa surpresa, o dono do Box disse-nos que não era preciso pagar porque, segundo
ele, ele estava ali porque eu o teria ajudado. Relutei, mas não teve jeito ele
não recebeu o dinheiro. Fomos a uma banca comprar verduras e quando fomos
pagar, a senhora que nos vendeu disse que não precisava pagar que eu a havia
ajudado e, assim, para a minha surpresa eu não consegui pagar nada – frutas,
verduras, galinha, tudo ganhei de presente naquele dia. Ela só sorria e dizia
que eu “tava de ganhador aberto”. Fiquei meio intrigado com o fato e a convidei
para experimentar um mocotó numa lanchonete da feira. Ela aceitou e nós pedimos
o mocotó e uma cerveja. Quando terminamos, a dona da lanchonete disse que o
mocotó ficava por conta da casa porque eu havia permitido que ela ocupasse um
espaço adicional para colocar as mesas da lanchonete. Um feirante que terminara
as suas atividades disse que a cerveja era por sua conta e, logo foram chegando
outros feirantes e cada um pagava uma cerveja e, de saideira em saideira, nós
só chegamos em casa às 11 horas da manhã. A Célia estava preocupada com tanta
demora, mas quando percebeu o nosso estado etílico, o que era preocupação virou
raiva, e nos passou uma descompostura.
Em síntese, a saudade que compartilho com todas
as pessoas que a conheceram e puderam desfrutar da amizade e da lealdade de
Julieta é imensurável, mas eu sempre haverei de lembrá-la pelas coisas boas e
divertidas que compartilhamos, ainda que meus olhos umedeçam toda vez que eu
olhar para aquela cadeira vazia. Obrigado Senhor pelos oitenta e cinco anos de
existência de Julieta Rufina Corrêa, obrigado Juju por todo amor que dedicaste
a mim, às tuas filhas, aos teus netos e bisnetos, de modo especial, aos meus
filhos Luís Fernando, Paulo César e Juliana. Obrigado por ter nos deixado esse
grande legado chamado AMOR! Que o AMOR que conosco compartilhaste, seja
compartilhado agora com os anjos e santos, que como você habitam agora a morada
do Senhor.