quarta-feira, 30 de abril de 2008

A reforma agrária dos subtraídos

A reforma agrária dos subtraídos[1]

Luiz Fernando R. Linhares




Pensar as últimas medidas tomadas pelo titular do Ministério do Desenvolvimento Agrário, Raul Jungmann, nos remete a perguntar: que têm em comum a atitude do Ministro com a histórica luta das quebradeiras de coco do Maranhão, os seringueiros do Acre (e de outros estados do Norte do País) e, ainda, os castanheiros do Pará? Qual a convergência das ações do Ministério com o Movimento dos Trabalhadores Rurais sem Terra, com a luta dos quilombolas, ribeirinhos, dos índios, dos atingidos por barragem (que não raras vezes coincide com as categorias já mencionadas)? Enfim, qual é o efeito de uma medida institucional, ao reconhecer e provar que no Brasil existem 1.899 latifúndios que somam 62,7 milhões de hectares de terras indevidamente apropriadas por pretensos proprietários desonestos que, usando da influência política e econômica, constroem, junto aos cartórios, fictícios títulos de propriedade?
No Brasil, em especial nas regiões Norte e Meio-Norte, a extração de produtos de origem vegetal constitui prática habitual dos trabalhadores e trabalhadoras rurais. Esses trabalhadores, ao longo da história do campesinato, estabeleceram relações de apropriação dos recursos naturais, o que merece maior importância por parte dos estudiosos da questão agrária e das autoridades oficiais que se propõem a resolvê-la.
O estudo dessas relações poderia explicar, por exemplo, o fato de um pretenso proprietário, de posse de informações sobre os limites de determinada área, registrá-la em cartório, como de sua propriedade, sem, porém nunca poder exercer o domínio absoluto sobre esta, por não contar com a aquiescência absoluta dos trabalhadores rurais. Poderia nos esclarecer sobre o sentimento, ou a força que move os trabalhadores rurais da região do Médio Mearim a impedir que um dito proprietário derrube babaçuais que, segundo julga, estariam dentro de sua propriedade. Também ajudaria a compreender o motivo dos chamados empates, nos quais os seringueiros impedem que os fazendeiros desmatem áreas de seringais para em seguida formarem pastos.
É possível que o Ministro tenha agido seguindo o rumo das denúncias que historicamente os movimentos sociais fizeram sempre em alto e bom som. Nesse sentido, foram feitos livros, cartas, panfletos, denúncias no rádio e na televisão.
Além das denúncias, o Ministro conta com instrumentos fortíssimos para proceder à verificação da fidedignidade dos títulos de propriedade espalhados em todo o território nacional. Trata-se do cadastro de propriedade do Incra, controle de recolhimento do ITR e, ainda, os instrumentos modernos da cartografia informatizada (se é que podemos dizer assim) – imagens de satélite, sistema de posicionamento global (gps), entre outros. É evidente que em um procedimento dessa estirpe, deve se contar com a aliança de outros órgãos oficiais que atuam no meio rural, para que se verifique a compatibilidade das informações. Adicionem-se a isto os processos de correição a que os cartórios podem ser submetidos.
Deixando à parte os métodos utilizados pelo Governo para chegar a tal conclusão, pode-se inferir que o sentimento de subtração foi ou é uma das forças propulsoras que movimentam, nesta ação, o Ministério do Sr. Jungmann e, ao longo das lutas pela reforma agrária, os movimentos sociais.
Sentem-se subtraídas as populações nativas ao verem suas posses imemoriais invadidas por madeireiros, garimpeiros e fazendeiros que muitas vezes têm a coragem, para não dizer cinismo, de contestar a imemorialidade da posse, confrontando-a com títulos construídos em cartórios por meios que já foram fartamente denunciados e documentados.
Sentem-se subtraídos trabalhadoras e trabalhadores rurais que sabem que seus avós chegaram à terra, quando esta ainda estava intacta, desbravaram-na, construíram suas casas, fizeram seus plantios, extraíram frutos nunca antes extraídos, estabeleceram formas estratégicas de convivência pacífica com a mãe natureza, desfrutando suas águas, terras e ar sem impactá-los de forma danosa e, de repente, se vêem cercados por arame farpados justificados por construtos jurídicos que não os alcançam.
Sentem-se subtraídos os negros que, antes ou após da chamada Abolição da Escravatura, conquistaram as suas terras e delas retiram o sustento de sucessivas gerações, construindo historicamente o que hoje se denomina de territorialidade, exercitando formas de exploração comuns, buscando cidadania, estabelecendo relações de troca com a sociedade envolvente.
Hoje, as comunidades negras rurais vêem-se forçadas a se re-apresentarem diante das autoridades constituídas, tendo como passaporte para a cidadania que historicamente lhes fora negada, extensos laudos antropológicos, que têm como objetivo impedir que sejam expulsos das suas terras, ora por fazendeiros, ora para implantação de projetos oficiais como barragens, unidades de conservação ambientais, centro de lançamento de foguetes e outros frutos do planejamento estatal, concebidos em nome do progresso de uma sociedade cuja aritmética não inclui esses grupos étnicos.
Por fim, o Governo agora também começa a dar sinais da percepção de que também está sendo subtraído, seja pela sonegação do Imposto Territorial Rrural pelo grande latifúndio, pelo desvio de recursos que poderiam ser empregados em serviços sociais básicos como saúde, educação, segurança pública e saneamento, mas, foram destinados a engordar as contas de grandes proprietários, quando da aprovação de projetos de incentivos fiscais, ou ainda, pela concentração de recursos fundiários imobilizados para o cumprimento da função social que lhe reserva a lei, quando milhões de brasileiros encontram-se tolhidos no direito de exercício do trabalho, por falta de terras. O sentimento de subtração pode resultar também quando do pagamento de áreas desapropriadas como de domínio particular, mas, a bem da verdade, muitas das vezes, não passam de pretensões de domínios.
Se o governo está certo no seu ato, está mais do que evidente que os negros, as quebradeiras de coco babaçu, os castanheiros, seringueiros, posseiros de todo o Brasil, os índios e o MST estão e continuarão certos todas as vezes em que se dispuserem a lutar contra a subtração fundiária inventada desde o dito descobrimento do Brasil, pelos portugueses. Se estas terras, cujos cadastros foram anulados forem destinadas para assentamento de trabalhadores rurais sem terra, será indício de que a propriedade construída por processos jurídico-administrativos começa a ceder lugar à propriedade legitimada a partir do uso. Isto significa dizer que a forma de apropriação concentradora, ou grilo, inventada pelos colonizadores, está sendo aos poucos substituída por outra há muito inventada pelos brasileiros, mas que somente agora começa a ganhar substância junto às autoridades: a propriedade de trabalho.

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[1] Artigo publicado no Jornal Pequeno, em São Luís(MA), no dia 16.08.2000.

domingo, 20 de abril de 2008

Crônica à sensatez[1]

Não sei como e quando começou essa prática que eu reputo como das mais sábias e modernas que uma organização pode fazer uso. Quando cheguei, ela já era consagrada nesta casa, e devo afirmar que com a inovação institucional que se faz a cada vez que a ela se acrescenta mais pessoas novas, abertas ao novo, ao moderno e às mudanças.
Sábio é tudo que acrescenta princípios éticos e morais, enriquece-nos como pessoas e como grupos sociais que compomos. Moderno é tudo que nos une, enquanto pessoas, famílias, ou mesmo sociedade. Moderno não é a televisão ou o som de última geração que alguém compra para ter em seu quarto e deles fazer uso exclusivo. Moderno é uso que se pode dar à televisão que colocamos na sala de estar para juntos assistirmos filmes, novelas, programas que depois nos une também nos comentários, nas exposições de pontos de vista distintos ou convergentes. Que nos une ao suscitar saudáveis debates onde mostramos opiniões ímpares: o ortodoxo, o contraditório, o controverso. Pontos de vistas singulares de pessoas de diferentes estirpes, de visões de vida também distintas, que têm plena consciência das diferenças que permeiam as relações pessoais, mas, que jamais perdem o senso do elo que os une, seja esse elo familiar, consangüíneo, fraternal, amigável, ou o compromisso com a missão organizacional da empresa que trabalhamos.
Não tenho dúvidas de que é a consciência desse elo que nos induz a fortalecer os interesses coletivos em detrimento de tudo que venha a emergir para separar, desagregar, gerar conflitos destrutivos. É, por certo, a consciência da necessidade do nosso fortalecimento enquanto ente coletivo que nos faz prescindir da cristalização de sentimentos antípodos à união.
Estou aqui tratando de algo muito simples. Um evento periódico que se vivencia a cada semana, quando em torno dos nossos mais puros e sinceros sentimentos nos reunimos sob os auspícios do mais alto Ser que a fé cristã nos faz crer.
No interregno de uns poucos minutos engendramos dinâmicas de grupo que suscitam reflexões sobre nossos comportamentos como pessoas cidadãs, como profissionais e, essencialmente, como ente coletivo.
Simples momentos para iniciarmos uma nova semana de trabalho refletindo e meditando sobre as nossas próprias práticas.
Quem mesmo no clímax da sua mais alta insensatez ousaria admitir ser um momento como esse eivado da mais ínfima nocividade? Quem seria capaz de ver insensatez na reunião de um grupo de parceiros que se unem à reflexão, meditação e oração? Não creio na existência de alguém, pelo menos no nosso meio, com tamanha insensatez. Mesmo porque quem assim procedesse não seria mais insensato, mas, insano. E, sinceramente, não acredito que exista alguém no nosso meio que mereça essa reputação.
Tanto é assim que a grandeza que permeia cada um dos funcionários da agência do Banco da Amazônia em Tocantinópolis veio neste começo de 2007 nos presentear com a devolução deste momento de luz, durante o qual nossos esforços convergem para os mais elevados estratos que o sentimento humano nos pode conduzir, onde humildade e grandeza se conjugam com feições de brincadeiras, reflexões, meditações e orações.
Por tudo isso só nos resta parabenizar as pessoas que compõem esta agência por mais este ato de grandeza e sensatez. Parabéns agência do Banco da Amazônia em Tocantinópolis. Viva a sensatez.




[1] Crônica escrita por Luiz Fernando do Rosário Linhares no dia 02 de janeiro de 2007.

Dia da consciência negra

Já faz algumas décadas que se comemora no Brasil o Dia da consciência negra, contudo, sabemos que não é muito grande o número de brasileiros que sabe porque ao invés do dia 13 de maio (data da abolição da escravatura no Brasil), os negros brasileiros passaram a comemorar o dia 20 de novembro (dia da morte de Zumbi).
Desde o final da década de 1920 e início da década de 1930 estudiosos brasileiros se dedicaram a estudar e escrever sobre a formação do povo brasileiro. Como resultado, temos várias obras clássicas que hoje nos ajudam a compreender o Brasil. Só para ilustrar, se quisermos nos aprofundar sobre a nossa história, a História de formação do povo brasileiro, evidentemente, teremos que recorrer a autores como: Perdigão Malheiros, Gilberto Freire, Caio Prado Júnior, Sérgio Buarque de Holanda, Florestan Fernandes, Roger Bastide, Artur Ramos, Emília Viotti da Costa, Otávio Ianni, Fernando Henrique Cardoso, Clovis Moura e tantos outros. Esses pesquisadores escreveram obras que nos ajudam bastante na compreensão da formação da sociedade brasileira.
Bem, mas, o que tem o dia da consciência negra com esse conjunto de obras? Qual a influência que esses autores têm sobre o fato de comemorarmos o dia da morte de Zumbi e não o dia atribuído à libertação dos escravos pela Princesa Isabel? Aparentemente, nada. Mas, só aparentemente.
Se considerarmos a idade, o tamanho da população e a importância do povo negro na formação da sociedade brasileira, logo percebemos que até pouco tempo não conseguíamos ver no conjunto de símbolos, heróis e referências nacionais, algo que denotasse a participação do negro na História do Brasil, ou que significasse para nós negros uma identificação vantajosa (dessas que nos faz feliz, aumenta a auto-estima, nos orgulha).
Ora, somos um país com uma população negra significativa, tivemos e temos uma participação na formação do povo brasileiro sobremaneira importante e andávamos nas ruas e avenidas e não víamos essas com denominações de heróis negros, os bustos erguidos nas praças não eram de heróis negros, a história que nos ensinavam (ou ainda ensinam?) nas escolas não é protagonizada por negros. Onde estão os heróis negros deste país? Além de questões como esta, lembramos que apesar de aqui no Brasil não termos um apartheid explícito não eram (ou não são?) poucos os vexames que pessoas negras passavam (ou passam) em decorrência do pré-conceito e da discriminação raciais.
Esses e outros fatos constituíram motivos propulsores para a organização de pessoas negras (e também brancos e índios contrários ao preconceito racial) em grupos que se dedicaram ao estudo da História do negro no Brasil, mas, aquela História que não era contada, até então nas escolas. Outros grupos, se dedicaram a linguagens específicas desta História: política, música, teatro, dança, poesia, pintura, entre outras.
A esse conjunto de grupos organizados nos diversos Estados da federação passamos a chamar de movimento negro. Movimento porque dentro deles não se estudava o negro apenas como forma de enriquecimento cultural, mas, como uma forma de subsidiar ações diversas desencadeadas sistematicamente, fazendo, com efeito, que um conjunto maior de pessoas tivessem acesso à verdadeira História da participação do negro na sociedade brasileira.
Essas ações nem sempre foram bem vistas pela camada social dominante, porque, principalmente, mostravam algo que essa parte da sociedade sempre quis esconder, abordava temas, que revelavam sentimentos e ações que incomodavam uma sociedade racista autoritária e cerceadora da participação de negros e índios, cujo discurso, principalmente para fora, negava o racismo internamente praticado, com argumentos como: “no Brasil temos uma democracia racial”, “não temos preconceito de cor, mas, apenas social” e outras coisas do gênero, que eram ditas como forma de apagar a ação racista cotidiana.
Mas, isto era tão evidente, que certa vez um político norte-americano chamado por uma universidade brasileira fazia aqui uma conferência e, durante o debate, um estudante brasileiro o inquiriu a falar do racismo (apartheid norte-americano) e, naquele momento, o congressista americano disse: “na América do Norte todo negro tem uma pistola apontada para a testa, enquanto aqui no Brasil a pistola lhe é apontada para a nuca”.
O fato é que nós temos uma História que está contada, está escrita por aqueles autores citados anteriormente e outros, mas, não era contada nas escolas e, ainda hoje é muito mal contada. Há pouco tempo, ensinando uma turma de formandos em pedagogia eu lhes perguntava se sabiam sobre a história dos quilombos e eles foram unânimes em responder que nunca tinham ouvido falar nesse assunto. Vejam que esses profissionais têm, entre outras, missões, a de transversalizar esse tema na sala de aula com os seus alunos. Como tratar de assuntos sobre os quais não temos acúmulo?
Enfim, não foi e não é em vão a ação dos movimentos negros, uma vez que muitos assuntos que não eram abordados, por reivindicação destes, passaram a fazer parte da agenda do governo, tendo em alguns casos se constituído mesmo até em leis, projetos, programas e políticas públicas. A luta não é em vão e dela muita coisa boa resultou: o 20 de novembro, resulta da consciência de que a Abolição da escravatura foi uma imposição da Inglaterra, na época, e não uma benevolente ação da princesa Isabel.
Na saúde, temos política para combater anemia falciforme, a hipertensão e outras doenças que são típicas ou mais freqüentes nas populações negras. A política de cotas nas universidades, ainda que tenha controvérsias, constitui uma conquista do movimento negro e, creio ainda, que muitas outras políticas públicas que hoje beneficiam pessoas de todos os segmentos da nossa sociedade, constituem conquistas do movimento negro.
As religiões de matriz africana não sofrem mais tanta discriminação e os terreiros dos cultos afro-brasileiros são freqüentados por pessoas de todos os matizes sociais.
O governo brasileiro deixou de ficar “tapando o sol com a peneira”, assumiu que nossa sociedade tem racismo, durante a reunião de Durban, na África do Sul, e passou a ter uma postura mais efetiva no combate às práticas racistas, instituindo políticas de promoção da igualdade racial.
Sem falar que o reconhecimento das terras dos remanescentes de quilombos hoje é um dispositivo constitucional regulamentado, embora, na prática, essa política ainda caminhe a lentos passos. E, ainda, os quilombolas participam ativamente do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar.
Poderia ficar aqui ilustrando a importância que tem a consciência negra no Brasil, mas, isso é um assunto lato que daria, certamente, para escrever um livro e não apenas uma crônica, para falar que a consciência negra, nada mais é, que uma sociedade cônscia da necessidade de fazer da história, educação, informação e da cultura negra, ações que sirvam para trazer melhorias e tratamento igualitário à sociedade brasileira. Que a prática e a exigência da prática da justiça social não constituem um problema do índio, do negro, do judeu ou outra etnia qualquer, mas, de toda a sociedade brasileira.
Salve o dia da consciência negra, por ser a data que Zumbi tornou-se o nosso símbolo maior de luta pela liberdade dos povos, uma vez que o quilombo dos Palmares era nação não só dos negros, mas, de todos que sedentos de uma sociedade igualitária ali se juntaram para lutar por esse objetivo – liberdade!