domingo, 30 de agosto de 2009

O enfermo

Naquele Domingo ele amanheceu sem muita disposição. Levantou foi à igreja, depois passou na feira livre comprou algumas frutas e retornou para casa.
Estava sem vontade qualquer. Deitou no sofá pra assistir televisão numa indisposição incômoda. Poderia ter saído para um churrasco com amigos, ir a um balneário, ou almoçar no restaurante Coentro Tapuio, ali onde costumava comer peixes frescos pescados no Araguaia ou no Tocantins.
Preferiu evitar companhias, quis ficar em casa, ler, sentir-se à vontade, meditar. E assim foi naquele Domingo.
Na segunda-feira foi trabalhar. Foi um dia parecido com muitos outros que vivera. Chegou e logo ligou o ar condicionado. Abriu as cortinas: queria sentir os raios de sol invadindo a sala.
Ligou o computador, olhou as mensagens no correio eletrônico, respondeu algumas, leu a costumeira mensagem que o seu chefe colocava na rede às segundas e minimizou o correio. Depois se conectou a sua página predileta e leu as notícias de sua preferência: política, esporte, economia. Logo se iniciou uma sequência de espirros. Foram espirros e mais espirros, algo fora do normal. Secou o seu estoque de “saúde!”, palavra que costumava dizer após cada espirro.
Os colegas que trabalhavam em sua volta começaram a expressar certo incômodo. Naqueles tempos havia uma pandemia de gripe suína, muitas mortes estavam ocorrendo no mundo, todos temiam um surto mais expressivo.
Depois dos espirros começou a coriza. Aquela secreção nasal e a sensação de que todas as cavidades nasais estavam congestionadas. O lenço molhara tanto que parecia ter sido imerso na água. Foi assim o dia todo. Mas, nada que atrapalhasse a sua rotina de trabalho.
O despertador tocou as quatro da manhã. Acordou, desligou o despertador do telefone celular, olhou as horas e voltou-se para a cama. Pegou o lençol fechou os olhos e quis dormir mais um pouco. Lembrou do compromisso que o esperava. Tinha que viajar, alguém lhe esperava no outro estado distante dali cem quilômetros. Não, definitivamente não podia obedecer as ordens do seu corpo, teve que esquecer aquela indisposição, fazer a higiene bucal, lavar o rosto, vestir um agasalho e sair. Não banhou como de costume, estava muitíssimo indisposto para tanto. Seu corpo parecia febril.
Ligou o carro e saiu. Parecia ser o seu dia de sorte: a balsa estava na rampa quando ali chegara. Legal! Logo estaria no outro estado sem ter que esperar mais de meia hora como das outras vezes. Deu graças a Deus! Sentiu-se aliviado.
Tinha o tempo a seu lado por isso dirigia sem pressa. Fez uma viagem tranqüila até a estação rodoviária de Imperatriz, no Maranhão. Deixou o carro no estacionamento e pôs-se a olhar ônibus por ônibus para ver se algum daqueles ali estacionados viera de São Luís. Não era o caso; todos vieram de outros lugares. Dirigiu-se a uma lanchonete tomou um copo de café com leite quente e sentou-se no banco mais próximo. Ficou ali por quase meia hora observando o movimento, o contínuo vai e vem dos viajantes. A alegria, a incerteza dos que chegam; a alegria, a incerteza dos que se vão.
De repente saiu andando para o outro lado da plataforma, quando ouviu o grito da sua filha: - olha o papai, mamãe! Elas estavam lá. Já faz tempo que vocês chegaram? – perguntou ele.
- Não, chegamos agora mesmo, estava apenas tomando um café aqui na lanchonete – explicou a esposa.
Colocaram as malas no carro, se acomodaram e ele pediu para que fossem a um hospital. Estava se sentindo mal. Ela perguntou o que era: ele respondeu que era gripe.
No hospital, se dirigiram à emergência, ele fez o prontuário e ficou esperando que o médico o chamasse. O médico foi até a recepção, conversou com a atendente e em seguida o chamou: Sr. Inácio Mousinho. Logo ele se apresentou e o médico lhe solicitou que o acompanhasse até o consultório. Ali, como sempre acontece, o médico lhe perguntou o que estava sentindo, iniciando desta forma o processo de anamnese. Era final de plantão. O médico o examinou, ouviu o seu pulmão com auxílio do estetoscópio, solicitou que ele respirasse profundamente e depois lhe receitou alguns remédios. Chamou uma enfermeira e pediu a ela que lhe fizesse logo alguma medicação, em seguida saiu do plantão.
Quando o outro médico entrou procurou se informar da situação com as enfermeiras de plantão. Perguntou, já aplicaram soro no paciente? Não, vou aplicar um soro glicosado agora. – respondeu a técnica em enfermagem. De pronto a esposa do paciente disse: olha, ele é pré diabético. Isso fez com que o médico mudasse de idéia e, com ares de quem estava com medo de chegar perto do paciente, disse: faça a medicação que falta e o libere; não é caso para internação.
Apesar dos apelos da mulher para dirigir o carro, Inácio Mousinho não cedeu,voltou para casa dirigindo. No entanto, ainda a caminho se deu conta que não tinha condições para fazer outra coisa além de repousar e tomar remédios. Sem qualquer explicação aquele médico mudou um dos remédios receitados pelo primeiro que me atendeu. Murmurou ele para a esposa. Ela respondeu monossilabicamente, como se estivesse um tanto pasma com a atitude do médico – é...
Em casa, apesar dos remédios, os espirros cederam lugar para uma tosse seca, sem escarros, incômoda, que lhe forçava os músculos do peito e da barriga, extraindo da sua garganta um som estrondoso e áspero. Sentia vergonha daquela tosse barulhenta, mas independia da sua vontade. Não tinha forças ou qualquer recurso físico ou biológico para contê-la naqueles momentos de agonia.
A tosse quase convulsiva lembrava os meninos da sua infância, acometidos da tosse braba (nome dado à coqueluche). Naquele momento na sua visão passava um velho filme em que ele via na beira do rio várias mães dando leite de coco babaçu para os seus filhos e em seguidas os banhava como forma de combater a tosse braba. Lembrava dos casos em que crianças sadias arremedavam àquelas que tinham a tal tosse.
Depois começou a pensar no papel religioso da doença, que, aliás, também é um papel social. Pensou como ela, a doença, transforma a pessoa sadia e apta a uma série de coisas, num ser carente de ajuda sem qualquer autonomia, inapto, inerte, sem condições, sem autoridade qualquer. Parece que esse efeito tem o papel de fazer a pessoa pensar sobre a sua verdadeira importância na vida. O rico, o autoritário, o poderoso, o mandão, o culto, o inculto, o violento, o depravado, o sabe que sou eu?..., o Zé Ninguém, que diferença têm quando estão sobre o leito, derrubados por uma enfermidade que os imobilizam? Parece que de certo modo a doença tem um papel de equidade.
Por outro ângulo, parece que ela tem o papel da sombra a realçar o contorno da imagem, quando muitos que por ela passam reconhecem que o mais importante da vida é vivê-la na sua plenitude, valorizando a própria vida tal como a vida das pessoas com as quais nos relacionamos.
É a doença que nos dá também a dimensão da ideia falsa do ser insubstituível, na proporção em que vidas passam e a vida continua. Nada para com a ocorrência da morte, enquanto consequência da enfermidade.
Absorvido pela tempestade de idéias sobre a vida e a morte, a saúde e a doença, a vivência e a convivência, Inácio Mousinho desperta de repente como se estivesse saindo de um sonho, um pesadelo, um passamento. Mas, porque tudo isso, será que eu estou pensando?... Não, acho que ainda não, mas, se eu tiver mais um dia de tosse, nessas condições, provavelmente, não resistirei. Pensou. Os músculos do meu peito, além de doídos estão supercansados, os músculos da minha barriga estão podres. Evidentemente, não resistirei a mais um dia tossindo desse jeito. Desta vez, pensou alto, como se estivesse dialogando com alguém. Será que terei que devolvê-la agora. Mas, assim sem nenhum aviso? Bem sei que da vida somos fiéis depositários, entretanto, acho que a devolução deste bem não deveria se dar de forma assim tão abrupta.
No dia seguinte, ele acordou mais esperto, até suou quente, sentiu a vida lhe acariciando o corpo. A tosse desaparecera, ninguém em casa estava contaminado com os seus espirros ou a sua tosse. Ah, que alívio, não se tratava de uma epidemia familiar. Por falar em familiar – pensou ele – como se dá a escassez de amigos quando adoecemos, ainda mais nestes tempos de ameaça de pandemia. Ah, como é bom e importante o aconchego familiar.Inácio queria sentir a sensação de liberdade. Levantou, abriu a janela para o sol entrar, olhou para o céu, agradeceu ao Grande Senhor do Universo, respirou fundo, abriu os braços e, como se falasse com alguém que só ele mesmo via, esbravejou num grito imenso de felicidade – estou apto para a vida novamenteeeeeeeee.

domingo, 2 de agosto de 2009

Reminiscências da minha infância em Rosário

Sem medo de ser taxado de saudosista, trago à tona as lembranças saudáveis que tenho da minha infância em Rosário.
Da casa onde nasci, na rua Benedito Leite, de frente para o rio Itapecuru-mirim, tenho a imagem da porta e janela, quase sem divisões. Sala, quarto, copa-cozinha e quintal.
A vizinhança amiga, fraterna, solidária e cordial constituía uma comunidade de afinidades, amizades, respeito, compadrios.
As crianças se reuniam as primeiras horas da noite para brincar de roda, preto fugido, pegador e tantas outras brincadeiras da época. Enquanto brincávamos, os mais velhos se reuniam nas calçadas e conversavam noite adentro.
Na época seca, de julho a dezembro, o rio Itapecuru era o nosso balneário maior. Foi nele que eu aprendi a nadar. Quando ele secava, no outro lado apareciam as praias, que nós chamávamos de croas.
Era comum atravessarmos o rio nadando. Às vezes nos utilizávamos de caules de bananeiras como bóias para atravessá-lo despendendo menos energia. Íamos aos bandos, montados em caules de bananeira, para as croas. Ali jogávamos bola o dia inteiro e depois voltávamos. Nem nos dávamos conta do risco que corríamos, embora de vez em quando o Itapecuru fizesse vitimas.
As peladas no campo do Comercial eram ótimas. Não me lembro de outra diversão capaz de engendrar em mim maior felicidade que o futebol. Era apaixonado pelo esporte. Adorava dar dribles e olhar debochadamente para os meus adversários. Nem precisa dizer o resultado disso. Brigas. Muitas brigas. Pancadas, eu as levei muitas vezes. Nada era capaz de me levar de um extremo ao outro como o futebol. A paixão pelo futebol nos leva do inferno ao céu e vice-versa em questão de segundos.
Lembro-me de um torneio que fizemos na praça do grupo, quando eu ainda estudava no Grupo Escolar Joaquim Santos. Formei um time com vários colegas que estudavam comigo, mas moravam na Rua de Cima: João Rabelo Siqueira, Henrique Felipe Ribeiro, José Bispo, eu e um goleiro cujo nome não me lembro.
Começou o torneio e o meu time nada de chegar. Jogaram os primeiros times sorteados e o meu time nada. Ninguém chegava. Achei mesmo que as pessoas não chegariam e pedi uma vaga num time ruinzinho que participava do torneio. Joguei, perdi e fui vaiado. Mas, o meu time era o ultimo a jogar e, na exata hora da nossa participação, os meus companheiros chegaram e então iniciamos uma trajetória de vitórias. Ganhamos o primeiro time, o segundo, o terceiro e fomos para a semifinal. Vencemos. Agora restava a final, com um time considerado invencível, mas, ai o meu time já estava embalado. Não deu outra: vencemos e eu saí de campo carregado nos braços da platéia.
Torcedor ranzinza, este era o termo da época, que me definia enquanto torcedor do Esporte Clube Comercial. Ali eu vi craques como Zeca Praiano, Ferreira, Bubu e Zezinho Coelho, Coivara, Dedezinho, Miguel Rezzo, Pititinga, Chaguinhas, Zé Cocó, Maranhão, Juracy Cabral, Lima Filho, Zé Irmão, Iron e tantos outros. Nada me dava mais alegria que uma vitória do Comercial; nada me propiciava maior tristeza que uma derrota do Comercial, especialmente, se fosse para o Ferroviário.
Momentos maravilhosos aqueles das festas da padroeira, Nossa Senhora do Rosário, e de São Benedito. Nunca poderia esquecê-los. Durante a minha infância, anualmente, sempre ganhava duas roupas de sair: uma para ir à festa de São Benedito e outra para a festa de Nossa Senhora do Rosário e pronto. Se tivesse bom comportamento e a professora ou a diretora da escola pedisse a minha mãe, eu poderia participar do desfile da escola no dia 7 de setembro, puxando um pelotão.
Tive uma infância de gente pobre financeiramente, mas muito rica de vivências e convivências. Aliás, estas eram tão fartas que jamais senti falta de bens materiais. Rica infância. Tempo em que fabricávamos os nossos brinquedos. Uma caçamba, se fazia com uma lata de sardinha, 4 tampinhas de vidro de mercúrio cromo (os pneus), dois talos de folha de coqueiro (os eixos), quatro furos laterais na lata de sardinha e um fio para puxar. Eis aí um belo brinquedo.
Um pião se fazia com um coco babaçu, que depois de bem lapidado, juntávamos a uma enfieira feita de cabinho. Um papagaio era feito com três talas de bambu, linha para amarrá-las adequadamente, folhas coloridas de papel para cobri-lo e um rabo artisticamente composto de linha e algodão. Evidente que para fazer papagaio e piões havia sempre artistas cujos produtos eram inigualáveis, para aqueles que preferiam um brinquedo mais elaborado e tinham grana para comprá-lo.
Bola boa mesmo era a tal da bola Pelé, entretanto, não desprezávamos uma boa bola de meia, feita no capricho.
Para brincar no rio fazíamos barcos de buriti, que, aliás, eram lindos, e vê-los deslizando na água e o seu dono nadando atrás era um espetáculo que enchia os meus olhos. Lá ia o barquinho lindo, uma réplica daqueles verdadeiros que deslizavam pelo Itapecuru vindos das diversas praias do litoral norte do Maranhão trazendo sal, peixe salpreso, coco da baía, murici e outros produtos daquelas bandas para trocar em Rosário. Maravilhoso mesmo era ver aquele barquinho navegando a mercê do vento e da correnteza do rio. Casco envernizado com breu preto, e no toldo colorido se destacava o nome – Proteção de São José. O pano muito bem feito completava em colorido aquela maravilhosa arte de fazer em buriti miniatura de embarcações.
Sem essa de achar que a minha infância foi melhor que as das gerações posteriores, mas ali nós utilizávamos brinquedos que aguçavam a nossa imaginação e ao mesmo tempo exigia que nos movimentássemos.
E por falar em miniatura, incorreria a um lapso sem precedentes se esquecesse dos carros feitos em paparaúba pelo mestre Juvenal Aquino. Verdadeiras maravilhas que me enchiam os olhos de menino que ver no colorido do brinquedo tudo que a sua imaginação permite. Caminhonetas, automóveis, caminhões eram miniaturas perfeitas sempre muito cobiçadas pelas crianças da minha época. Eu tive um caminhão FNM, que nós chamávamos carinhosamente de fenêmê. Tinha ciúmes do meu fenêmê. Gostava de exibi-lo andando nas ruas de Rosário, não me cabia em mim. Quando estava dirigindo aquele carrinho, tinha a impressão que o mundo parava pra me ver. Fio esticado na mão puxando o caminhão e eu seguia imitando o som do motor zum, zum, zuuuummmm. De vez enquanto um apito – bibite, bibite, e jogava o carrinho nas proximidades dos pés das pessoas que caminhavam na rua, tirando um fino. Que maravilha!
Meninos gostam de brincadeiras de movimento, de força, de disputa. As disputas de espadas estavam neste contexto. Fazíamos as nossas espadas com um talo de malva e de uma sandália tipo japonesa, em desuso, fazíamos uma roda para protegermos a mão. Então estávamos prontos para as lutas de espadas. Precisa falar dos machucões, dos ferimentos, das brigas, dos choros? Resultados semelhantes produziam as guerras de carrapato (era assim que chamávamos a mamona). Fazíamos uma sacola de pano, com alça para carregá-la a tiracolo e a enchíamos de munição – sementes de carrapatos. A baladeira era a arma. Formávamos grupos que procuravam os esconderijos adequados e daí partíamos para a guerra de carrapatos. O espetáculo era uma dessas coisas violentas que meninos gostam de praticar, imitando os violentos filmes de combate que assistíamos na televisão daquela época. Acredito mesmo que só pela proteção divina não acontecia nada de mais grave além dos hematomas espalhados pelo corpo causados pelos projéteis.
Poderia passar madrugadas e madrugadas escrevendo sobre as riquezas da minha infância, entretanto, quero deixar que um pouco desta saudade permaneça em mim, não quero exteriorizá-la toda agora. Às vezes fico a pensar, os meus filhos não tiveram um Itapecuru-mirim para aprenderem a nadar; aprenderam a nadar em piscinas, participaram de várias competições, nadavam os estilos crow, costas, peito e borboleta, mas, cá pra nós, não via no sorriso deles alegria que se comparasse com aquela que eu sentia ao atravessar o Itapecuru, nadando como cachorro, com o pescoço todo fora da água, sem professores para ensinar e sem despesas adicionais para os meus pais no final do mês.
Da mesma forma, não podemos negar o fascínio que o computador exerce sobre nós, entretanto, me pergunto se há algum jogo de computador que seja mais emocionante que as disputas travadas nos campinhos de várzea, onde dezenas de crianças, em times de cinco pessoas, se sucediam em disputas intermináveis, nos chamados desafiados, competindo em ferrenhas partidas no afã da invencibilidade.De tudo isso, uma coisa é incontestável – os tempos mudaram.