De certo modo, o desprezo pela data anterior pode significar certo menosprezo pela força do movimento abolicionista brasileiro, e ainda que às avessas, a valorização da Abolição da escravatura feita pela princesa Isabel, quando na verdade, tudo decorre de uma imensa e duradoura luta que se inicia com Ganga-Zumba, passando pelas triunfais batalhas comandadas por Zumbi dos Palmares, a proibição do tráfico negreiro, o movimento abolicionista, culminando com o desfecho da assinatura e publicação da Lei Áurea por uma princesa encurralada, sem outra saída senão aquela de declarar a Abolição.
A Abolição significou apenas a quebra dos elos de propriedade entre o negro escravizado e o antigo senhor de escravos. A liberdade, na acepção da palavra, é um ideal pelo qual lutamos até hoje.
Isso decorre da postura historicamente racista que se estabeleceu no país como um legado dos raivosos derrotados ex-senhores de escravos às suas sucessivas descendências. É como se toda aquela conjunção de fatores propulsores da Abolição lhes causassem tanta raiva que, sem alternativa, eles dissessem: - bem esses negros querem ser livres... que fiquem livres, mas sem os bens necessários para uma vida digna e decente. Assim eles jamais alcançarão o estado de cidadania plena e até se arrependerão da liberdade. Este será o preço da falta de indenização dos gastos que tivemos, com tráfico, com a aquisição deles e com a desvalorização das nossas propriedades...
Os fatos confluem, infelizmente, para a confirmação desse discurso tácito que persiste na relação da população negra brasileira com as forças hegemônicas no país que a todo tempo engendram novas e dissimuladas formas de racismo que se colocam como impedimentos ardis de ascensão social do negro brasileiro.
Vejam as quotas... quantos discursos contrários ao aumento da presença do negro nas universidades. Quantas formulações com disfarces cientificamente fundamentados só para nos dizer – “não, não aceitamos a elevação do número de negros nas universidades”, como se fosse um acinte sermos iguais, querermos lugares sociais que até pouco tempo eram privilégio apenas dos outros.
Agora me digam, o sofrimento dos negros africanos e suas descendências escravizadas no Brasil, durante quase quatro séculos de cativeiro foi menor que o holocausto sofrido pelos nossos irmãos judeus? Evidente que não. Esses eventos vergonhosos, asquerosos, devem ser sumariamente desestimulados na nossa civilização, condenando-se quaisquer indícios de posturas inclinadas a tanto.
Com relação ao sofrimento dos judeus a mais leve inclinação a negá-lo, em qualquer lugar do planeta, será prontamente repelida, repudiada, rechaçada, no que concordamos prontamente.
Quando tratamos da reparação aos diversos males sofridos pela população negra no curso da história do povo brasileiro, logo surgem os racistas de plantão, como nos velhos tempos, com os seus rotos discursos racistas mascarados de “embasamentos científicos e até ditos democráticos” sempre contrários a quaisquer benefícios que propiciem ao povo negro uma vida igualitária.
Discriminam-nos pela cor da nossa pele e nos igualam pela pobreza, como se uma coisa não estivesse ligada à outra. Daí o discurso de que somos discriminados por sermos pobres e não simplesmente pela cor da nossa pele. Mentira.
No Brasil, não raras vezes, nos discriminam até quando julgam nos igualar. O racismo, pasmem, é ardilosa e culturalmente disseminado neste país que nos últimos anos até o Estado tem criado formas peculiares de impedimento da ascensão da pessoa negra.
Vejam quantas secretarias ditas da igualdade racial neste país. O que significam esses entes governamentais edificados sem os necessários alicerces como se se destinassem a cuidar das necessidades do povo negro? Constituem instituições natimortas, portanto, inócuas, criadas sem estrutura de pessoal, sem orçamento e sem objetivos devidamente delineados, como se os empregos ali ardilosamente abertos satisfazendo necessidades imediatas de um pequeno número de irmãos negros, se constituíssem em benefício de todo um segmento social relegado ao desprezo, a invisibilidade. São, sobretudo, órgãos oficiais destituídos de poder, forma comprovadamente eficaz de imobilização de lideranças do movimento negro, que passam a atuar como almofadas que amenizam os choques entre a comunidade negra e o Estado disfarçadamente racista.
Lembro-me de um comentário de um negro, hoje ministro do Supremo, falando sobre um curso para negros postulantes a uma vaga no Instituto Rio Branco, que a Fundação Cultural Palmares apoiava. Aquele ilustre, naquela ocasião, num evento que acontecia num dos auditórios do Congresso Nacional, sugerira: “ora se o Itamarati deseja de fato ter diplomatas negros porque não promove negros como Carlos Moura, por exemplo. Ainda tem que esperar que esses rapazes e moças se formem”...
Percebam, o comentário vinha de uma pessoa que sabia o que estava dizendo. Na verdade, o Estado se provia de expediente que mais do que ajudar a integrar negros aos quadros da diplomacia brasileira, protelava este momento.
O raciocínio é simples: se temos um engenheiro civil negro competente que faz parte do movimento negro, ao invés de colocá-lo numa instituição especialmente feita para imobilizar lideranças do movimento negro, deve-se, ao contrário integrá-lo numa instituição compatível com a sua formação dando-lhe cargo e poder para daquela posição ajudar a comunidade negra, onde quer que ela se encontre.
Se temos um médico negro que entende das enfermidades que mais afetam a população negra, como a tuberculose, a hipertensão, a anemia falciforme, que a este seja dada a oportunidade e o poder para ajudar esse segmento da sociedade neste mister... e basta.
Ele saberá identificar essas pessoas nas filas dos hospitais, nos bairros em que residem e onde quer que estejam.
Ao invés disto, fundam-se instituições para negros, verdadeiros guetos oficiais, onde lideranças negras disputam nichos de poder, chegando não raras vezes ao “canibalismo”. Isto é ótimo para quem não deseja a ascensão social. Negro se jogando contra negro, movimento social se dispersando, fragmentando-se, cada liderança que se incompatibiliza com uma entidade, logo forma outra entidade e assim por diante. Chegando mesmo a ter líderes que têm entidades de uma só pessoa, o próprio líder, que no caso torna-se liderança de si mesmo.
Alguém poderia se contrapor ao meu argumento, dando como exemplo a presença, ou melhor a passagem de Gilberto Gil no Ministério da Cultura. Certo; não fosse esta uma exceção.
Num país como o nosso, dificilmente Barack Obama conseguiria ser presidente. Tantas seriam as dificuldades, tantas seriam as armadilhas retóricas que se muito ele evoluísse nesse sentido, chegaria a um Ministério desses sem qualquer poder. Isso se não lhe fosse arranjado um crime hediondo, como comprar sorvete na sorveteria do aeroporto com o cartão de crédito oficial.
Exagero? Então me diga porque mais de três mil comunidades negras rurais que há mais de século vivem e trabalham nas suas terras, em posse mansa e pacífica, jamais tiveram as suas terras tituladas? Porque o país teima em invisibilizar essas comunidades mesmo sabendo que centenas dela têm hoje laudo antropológico que provam a territorialidade desses grupos sociais? Porque somente as terras de negros e índios precisam de laudos antropológicos para ser reconhecidas, enquanto a maioria dos pretensos proprietários de terras só precisa de uma planta topográfica e uma precária escritura de compra e venda? O que é tratamento igualitário neste país?
No momento hodierno, as instituições brasileiras (mesmo o negro sendo minoria nas universidades) estão cheias de instituições com pessoas negras bem qualificadas ocupando cargos de nível incompatível ou inferior ao seu grau de instrução e, o pior, sendo chefiadas por gente sem qualificação adequada.
Não quero desanimar os irmãos negros, mas os alerto para a realidade atual, quando o bom nível de escolaridade já não constitui simples elemento de ascensão social. Além disso, é necessária uma conjunção de fatores, como por exemplo, influência política, que poucas pessoas negras possuem.
Se a sociedade brasileira quiser mesmo ver reinar neste país a tão propalada democracia racial, é preciso ir além dos discursos vazios, de nos comprazermos em ver o país evoluir como uma escola de samba que tem negros suando na bateria e puxando o samba para uma elite branca ser manchete como destaque da escola.
Obrigado por comentar.