José Ribamar Pereira dos Santos,
esse era o nome de Zé Pitó. Nem me perguntem de onde vem o apelido, porque eu
não sei, nunca me ocorreu a curiosidade de saber e nunca ouvi nada sobre isso
nas conversas da família. Note-se que ele não era Linhares como os demais
filhos os demais irmãos. Era o único que carregava o sobrenome do pai. A minha
mãe e o pai dele foram casados.
Na família se falava com orgulho,
que ele estudou no Colégio Maristas. Também se falava que, em Rosário, ele era
passista de uma das escolas de samba; que tocou bongô e foi cantor do “Jazz 4
de Março”, a orquestra do Sr. João dos Santos, como era conhecido. Zé Pitó era
o tal.
Passei a maior parte da minha
infância como um menino “solitário”, tendo o Zé Pitó como um mito, algo muito
distante e de muita importância para mim – o meu irmão. Quando eu nasci Zé Pitó
já residia no Rio de Janeiro – era estivador marítimo como o seu pai, Ciríaco.
Isso eu sempre ouvia a minha mãe dizer. Estivador marítimo era uma palavra que
a minha mãe dava muita ênfase, acredito que para diferenciar de outros tipos.
Mas também porque, segundo eu ouvia, estivadores marítimos eram muito
importantes, seus ganhos eram, ou ainda são, os maiores da categoria. Bem,
assim desde criança eu sabia a profissão do meu irmão.
Eu era criança quando Pitó foi
uma vez a Rosário. Íamos banhar no rio Itapecuru e ele ficava pedindo que eu
entrasse na água, mas eu tinha medo ainda. Desse tempo, as lembranças são
vagas, raras. Lembro-me também que ele sempre mandava dinheiro para a minha mãe
e esse dinheiro chegava pelos Correios e Telégrafos e a minha mãe recebia
conforme a disponibilidade do Correio de Rosário. Isto era uma coisa muito esquisita.
Meu irmão mandava, por exemplo, R$ 100,00, então chegava um aviso na nossa
casa. Íamos ao Correio buscar o dinheiro, aí o chefe da agência dos Correios em
Rosário dizia: - olha só tem R$ 10,00, leva esse e volta depois pra buscar
mais. E assim recebíamos à prestação até completar o total. Não sei dizer se
essa era uma prática da época, se era uma prática peculiar da agência de
Rosário, ou se era uma prática abusiva à nossa pobreza.
Havia também as correspondências
entre a minha mãe e o meu irmão. Minha mãe, Joana Batista Linhares (Joana Palitó)
era uma pessoa destemida, de temperamento indócil, não dominava a escrita e
sempre pedia para outras pessoas escreverem as cartas que ela dirigia ao Zé
Pitó. Muitas vezes vi as pessoas constrangidas sem querer escrever os palavrões
que ela dizia para colocarem nas cartas. As pessoas perguntavam: - É para
colocar assim mesmo Palitó? Não é melhor trocar esta palavra? – Ela respondia
sempre que tinha que ser do jeito que ela mandava porque senão ele ia pensar
que não era ela que estava mandando aquela carta. O Pitó era muito paciente e
tinha um respeito enorme pela minha mãe. Nunca respondia no mesmo tom, sempre
era muito polido, respeitoso, carinhoso para com ela. Ela tinha orgulho disso.
E sempre me contava que ele um dia escreveu-lhe uma carta elogiando as surras
que ela lhe havia dado quando ele ainda morava em Rosário, nestes termos: -
“Poucas e boas foram surras que a senhora me deu”. E completava dizendo que
elas foram importantes para que ele aprendesse coisas que muito lhe ajudaram na
vida distante da família. Ele sabia fazer todos os serviços domésticos (lavar,
engomar, cozinhar) muito bem.
Para mim, Pitó era mais que um
irmão, era um irmão idealizado. A distância me fez produzir na minha mente um
irmão ideal. Aquele irmão do qual eu me orgulhava muito e que um dia iria
voltar para suprir toda a lacuna que sua ausência deixara na minha vida. Nunca
pensei numa relação igualitária com o meu irmão, mas o imaginava sempre de uma
forma muito infantil, como um ser que chegaria de algum outro planeta e mudaria
tudo em minha vida para melhor.
Creio que esta forma de
raciocínio foi muito responsável pelos conflitos entre mim e ele. Esses
conflitos sempre foram mais tácitos do que manifestos. Tinha ciúmes se via ele
pagando, por exemplo, uma cerveja para um amigo. Não dizia nada, mas sempre
achava que ele devia, ao invés disso, fazer alguma coisa para mim com aquela
grana. E aí já ficava zangado com ele sem que ele soubesse a causa.
Foi quando eu já morava em São
Luís que eu e o meu irmão nos aproximamos. Foi mais ou menos no início dos anos
1970 que Zé Pitó nos visitou em São Luís. Naquela época, vinha também um grupo
de pessoas que formava a associação de maranhenses que moram no Rio de Janeiro.
Numa dessas vindas, o grupo fez uma festa no Clube Montese, no bairro do João
Paulo, animada pelo grupo musical “Nonato e seu Conjunto”. Nessa festa eu
arranjei uma briga com a minha irmã Vilma e o Zé Pitó me mandou para casa.
Fiquei possesso, mas obedeci. Afinal, ele era o irmão mais velho.
Depois, ele passou a nos visitar
uma vez por ano. Quando ficou viúvo intensificou as visitas até que veio de
muda. Nesta época já havíamos fundado a
Turma do Saco, na qual ele entra para comandar a bateria e ficar conhecido na
cidade como mestre de bateria – maestro Zé Pitó. Na Turma do Saco, vivíamos
entre tapas e beijos, eu sempre buscando o irmão por mim idealizado, ao invés
de compreender o irmão real que eu tinha. Mas, o Pitó era comigo do mesmo jeito
que era com a minha mãe: gentil, amigo, carinhoso.
Custei muito a compreender as
nossas diferenças. Quando isto aconteceu passamos a ter uma vida mais
harmoniosa. Mas, na verdade, eu o admirava muito. Sempre o imitava, fumando o
cigarro que ele fumava, me vestindo como ele se vestia e até roubava as roupas
dele. Eu o admirava muito, apesar toda a minha frustração pela diferença entre
o irmão idealizado e o Zé Pitó de carne e osso.
A minha admiração pelo Zé Pitó
chegava ao clímax quando eu o via dançando. Ele era demais. O cara sabia dançar
como poucos. Dizia que foi uma mulher que lhe ensinou. Nunca soube quem foi essa
mulher, mas a imagino como uma excelente professora de dança. Zé Pitó era um
exímio dançarino. Lembra da festa do Montese, que ele me mandou para casa?
Naquela festa, um amigo seu o desafiou. Teimava que dançava mais do que ele,
então resolveram parar a festa para o tira teima. Como de costume, em momentos
como esse, quando ele não tinha um par, sempre pedia licença para o seu
compadre Nhô Bi para dançar com a esposa dele – a sua comadre Nitinha. Até hoje
não conheci mulher que dance melhor que a Nitinha. Dada a aquiescência do
compadre, Zé Pitó encarregou o concorrente de escolher os ritmos e deu a ele
vantagem de começar. Como eram amigos e conhecidos de todos, as pessoas se
dividiram na torcida.
Contam que o amigo do Zé Pitó
iniciou a primeira dança e fez o que sabia. Dançou muito bem sob os olhos
curiosos de todos que ali estavam. Terminada a parte, chegara a vez de Pitó e
Nitinha. O maestro Nonato iniciou a execução da música, Pitó e Nitinha logo
disseram para que estavam ali. De entrada eles fizeram um jogo de pernas que
fez o Montese vir abaixo – todos que ali estavam os aplaudiram e nem precisa
dizer quem foram os vencedores. Houve quem exclamasse ao concorrente: - “Te sai
dessa, amigo, com Zé Pitó tu não te crias como dançarino”. Ele dançava demais.
Gostava tanto de dançar que ensinou a Socorro Costa, a sua esposa, assim os
dois podiam brilhar nos bailes da vida. E foi assim enquanto ele viveu.
Zé Pitó deixou para mim uma
imagem de uma pessoa que sempre estava de bem com a vida. Foi viúvo por três
vezes, mas nunca o vi a reclamar da vida. Gostava de cantar, tocava pandeiro
como poucos. Adorava vestir-se bem. Tinha um estilo próprio que aprendeu com o
Rio de Janeiro. Sapatos e calças brancas eram partes imprescindíveis do seu
estilo de vestir. Zé Pitó era uma pessoa que não nasceu para o anonimato.
Dificilmente chegaria num lugar para não ser notado. A voz, a roupa, a boa
aparência eram ingredientes que certamente chamariam a atenção de alguém.
Sei que o que escrevo aqui não descreve a
totalidade daquilo que foi o meu irmão Zé Pitó, mas é certo que esta foi a
forma que encontrei para externar a minha saudade.