segunda-feira, 22 de julho de 2013

Eu e Zé Pitó




José Ribamar Pereira dos Santos, esse era o nome de Zé Pitó. Nem me perguntem de onde vem o apelido, porque eu não sei, nunca me ocorreu a curiosidade de saber e nunca ouvi nada sobre isso nas conversas da família. Note-se que ele não era Linhares como os demais filhos os demais irmãos. Era o único que carregava o sobrenome do pai. A minha mãe e o pai dele foram casados.
Na família se falava com orgulho, que ele estudou no Colégio Maristas. Também se falava que, em Rosário, ele era passista de uma das escolas de samba; que tocou bongô e foi cantor do “Jazz 4 de Março”, a orquestra do Sr. João dos Santos, como era conhecido. Zé Pitó era o tal.
Passei a maior parte da minha infância como um menino “solitário”, tendo o Zé Pitó como um mito, algo muito distante e de muita importância para mim – o meu irmão. Quando eu nasci Zé Pitó já residia no Rio de Janeiro – era estivador marítimo como o seu pai, Ciríaco. Isso eu sempre ouvia a minha mãe dizer. Estivador marítimo era uma palavra que a minha mãe dava muita ênfase, acredito que para diferenciar de outros tipos. Mas também porque, segundo eu ouvia, estivadores marítimos eram muito importantes, seus ganhos eram, ou ainda são, os maiores da categoria. Bem, assim desde criança eu sabia a profissão do meu irmão.
Eu era criança quando Pitó foi uma vez a Rosário. Íamos banhar no rio Itapecuru e ele ficava pedindo que eu entrasse na água, mas eu tinha medo ainda. Desse tempo, as lembranças são vagas, raras. Lembro-me também que ele sempre mandava dinheiro para a minha mãe e esse dinheiro chegava pelos Correios e Telégrafos e a minha mãe recebia conforme a disponibilidade do Correio de Rosário. Isto era uma coisa muito esquisita. Meu irmão mandava, por exemplo, R$ 100,00, então chegava um aviso na nossa casa. Íamos ao Correio buscar o dinheiro, aí o chefe da agência dos Correios em Rosário dizia: - olha só tem R$ 10,00, leva esse e volta depois pra buscar mais. E assim recebíamos à prestação até completar o total. Não sei dizer se essa era uma prática da época, se era uma prática peculiar da agência de Rosário, ou se era uma prática abusiva à nossa pobreza.
Havia também as correspondências entre a minha mãe e o meu irmão. Minha mãe, Joana Batista Linhares (Joana Palitó) era uma pessoa destemida, de temperamento indócil, não dominava a escrita e sempre pedia para outras pessoas escreverem as cartas que ela dirigia ao Zé Pitó. Muitas vezes vi as pessoas constrangidas sem querer escrever os palavrões que ela dizia para colocarem nas cartas. As pessoas perguntavam: - É para colocar assim mesmo Palitó? Não é melhor trocar esta palavra? – Ela respondia sempre que tinha que ser do jeito que ela mandava porque senão ele ia pensar que não era ela que estava mandando aquela carta. O Pitó era muito paciente e tinha um respeito enorme pela minha mãe. Nunca respondia no mesmo tom, sempre era muito polido, respeitoso, carinhoso para com ela. Ela tinha orgulho disso. E sempre me contava que ele um dia escreveu-lhe uma carta elogiando as surras que ela lhe havia dado quando ele ainda morava em Rosário, nestes termos: - “Poucas e boas foram surras que a senhora me deu”. E completava dizendo que elas foram importantes para que ele aprendesse coisas que muito lhe ajudaram na vida distante da família. Ele sabia fazer todos os serviços domésticos (lavar, engomar, cozinhar) muito bem.
Para mim, Pitó era mais que um irmão, era um irmão idealizado. A distância me fez produzir na minha mente um irmão ideal. Aquele irmão do qual eu me orgulhava muito e que um dia iria voltar para suprir toda a lacuna que sua ausência deixara na minha vida. Nunca pensei numa relação igualitária com o meu irmão, mas o imaginava sempre de uma forma muito infantil, como um ser que chegaria de algum outro planeta e mudaria tudo em minha vida para melhor.
Creio que esta forma de raciocínio foi muito responsável pelos conflitos entre mim e ele. Esses conflitos sempre foram mais tácitos do que manifestos. Tinha ciúmes se via ele pagando, por exemplo, uma cerveja para um amigo. Não dizia nada, mas sempre achava que ele devia, ao invés disso, fazer alguma coisa para mim com aquela grana. E aí já ficava zangado com ele sem que ele soubesse a causa.
Foi quando eu já morava em São Luís que eu e o meu irmão nos aproximamos. Foi mais ou menos no início dos anos 1970 que Zé Pitó nos visitou em São Luís. Naquela época, vinha também um grupo de pessoas que formava a associação de maranhenses que moram no Rio de Janeiro. Numa dessas vindas, o grupo fez uma festa no Clube Montese, no bairro do João Paulo, animada pelo grupo musical “Nonato e seu Conjunto”. Nessa festa eu arranjei uma briga com a minha irmã Vilma e o Zé Pitó me mandou para casa. Fiquei possesso, mas obedeci. Afinal, ele era o irmão mais velho.
Depois, ele passou a nos visitar uma vez por ano. Quando ficou viúvo intensificou as visitas até que veio de muda.  Nesta época já havíamos fundado a Turma do Saco, na qual ele entra para comandar a bateria e ficar conhecido na cidade como mestre de bateria – maestro Zé Pitó. Na Turma do Saco, vivíamos entre tapas e beijos, eu sempre buscando o irmão por mim idealizado, ao invés de compreender o irmão real que eu tinha. Mas, o Pitó era comigo do mesmo jeito que era com a minha mãe: gentil, amigo, carinhoso.
Custei muito a compreender as nossas diferenças. Quando isto aconteceu passamos a ter uma vida mais harmoniosa. Mas, na verdade, eu o admirava muito. Sempre o imitava, fumando o cigarro que ele fumava, me vestindo como ele se vestia e até roubava as roupas dele. Eu o admirava muito, apesar toda a minha frustração pela diferença entre o irmão idealizado e o Zé Pitó de carne e osso.
A minha admiração pelo Zé Pitó chegava ao clímax quando eu o via dançando. Ele era demais. O cara sabia dançar como poucos. Dizia que foi uma mulher que lhe ensinou. Nunca soube quem foi essa mulher, mas a imagino como uma excelente professora de dança. Zé Pitó era um exímio dançarino. Lembra da festa do Montese, que ele me mandou para casa? Naquela festa, um amigo seu o desafiou. Teimava que dançava mais do que ele, então resolveram parar a festa para o tira teima. Como de costume, em momentos como esse, quando ele não tinha um par, sempre pedia licença para o seu compadre Nhô Bi para dançar com a esposa dele – a sua comadre Nitinha. Até hoje não conheci mulher que dance melhor que a Nitinha. Dada a aquiescência do compadre, Zé Pitó encarregou o concorrente de escolher os ritmos e deu a ele vantagem de começar. Como eram amigos e conhecidos de todos, as pessoas se dividiram na torcida.
Contam que o amigo do Zé Pitó iniciou a primeira dança e fez o que sabia. Dançou muito bem sob os olhos curiosos de todos que ali estavam. Terminada a parte, chegara a vez de Pitó e Nitinha. O maestro Nonato iniciou a execução da música, Pitó e Nitinha logo disseram para que estavam ali. De entrada eles fizeram um jogo de pernas que fez o Montese vir abaixo – todos que ali estavam os aplaudiram e nem precisa dizer quem foram os vencedores. Houve quem exclamasse ao concorrente: - “Te sai dessa, amigo, com Zé Pitó tu não te crias como dançarino”. Ele dançava demais. Gostava tanto de dançar que ensinou a Socorro Costa, a sua esposa, assim os dois podiam brilhar nos bailes da vida. E foi assim enquanto ele viveu.
Zé Pitó deixou para mim uma imagem de uma pessoa que sempre estava de bem com a vida. Foi viúvo por três vezes, mas nunca o vi a reclamar da vida. Gostava de cantar, tocava pandeiro como poucos. Adorava vestir-se bem. Tinha um estilo próprio que aprendeu com o Rio de Janeiro. Sapatos e calças brancas eram partes imprescindíveis do seu estilo de vestir. Zé Pitó era uma pessoa que não nasceu para o anonimato. Dificilmente chegaria num lugar para não ser notado. A voz, a roupa, a boa aparência eram ingredientes que certamente chamariam a atenção de alguém.
Sei que o que escrevo aqui não descreve a totalidade daquilo que foi o meu irmão Zé Pitó, mas é certo que esta foi a forma que encontrei para externar a minha saudade.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Uma música de raiz chamada toada



Mais do que por acaso, foi por boa educação que o Manoel Júnior convidou a minha família para passar a noite de São Pedro na sua belíssima fazenda.
Manoel Júnior é comerciante e pecuarista, alagoano, residente em Santa Inês. Estávamos na casa do irmão(.’.) Noilton, comemorando o aniversário da cunhada Fátima, domingo passado, quando ele, Manoel Júnior, fez o convite aos presentes. Não nos fizemos de rogados, fomos. Chegamos à fazenda por volta das oito da noite. A meninada aproveitou o espaço livre que tinha para brincar, soltar fogos e se confraternizar num bate papo animadíssimo que varou a madrugada.
Os adultos ficaram em torno de uma mesa, saboreando carne de carneiro assada, comendo deliciosos bolos de milho e de arroz, molhando a conversa com uma cerveja geladíssima. Quando sentir o ambiente, percebi que havia cometido duas faltas: não levei uma garrafa de vinho para harmonizar com aquela saborosa carne de cordeiro; não levei o banjo, quando a lua no céu, belíssima, se derramava em lirismo.
Logo a chuva de São Pedro nos tirou do terreiro, nos remetendo ao alpendre da casa. Ali não podíamos contemplar a lua, apenas a fogueira imponente que resistia acesa apesar da chuva, mas uma conversa animadíssima nos unia numa alegria singular. Enquanto conversávamos amenidades o dono da casa, quase que num cochicho, me confidenciava que gostava de ouvir toada e assim costumava fazer um pouco mais tarde. Dito e feito. A reunião de amigos que era embalada por um som vindo do carro do anfitrião, após às 11 da noite foi surpreendida por um canto forte entoado “na capela”, ou seja, sem acompanhamento instrumental, por duas pessoas que fazem primeira e segunda voz, cantando versos nordestinos numa entonação que nos envolve da alma às vísceras. Lindo! Embora, cabe mencionar, parte do público presente não o tenha entendido, e por isso o desaprovado. O que, no entanto, não diminui a beleza do canto, que o Júnior chama de toada.
Se existe música de raiz, a toada é, da música brasileira, aquela que mais está entranhada no chão nordestino e, sem dúvida, dela derivam muitas outras que cantamos sem nos dar conta da origem.
Os cantores de toada cantam o Nordeste por excelência. Nela a terra, a plantação, a água e a seca, a mulher, o homem, a família, o amor exitoso, ou a saudade, o gado, a chuva, tudo é excentricamente nordestino. Já tinha ouvido o Chico César cantar toada, mas até ontem à noite (29 de junho de 2013) não sabia que aquela música que ele cantava assim se chamava – toada. Nela, o sangue nordestino se agita numa euforia intrínseca, que em quem a ouve e a aprecia se traduz em risos e/ou lágrimas. O nordestino fica em transe viajando em pensamentos, revisitando a família, ancorando nos portos da reminiscência, preso na sua história e na história da sua terra, da sua família. Nessa viagem, passado e presente se complementam, felicidade se mistura a tantos outros sentimentos de ganhos e perdas que se transformam em risos e lágrimas num mesmo rosto, como a chuva e o sol se encontram nas terras nordestinas.
A toada está para a memória musical nordestina, como a prosa de Zé Limeira, o poeta do absurdo, está para a poesia de cordel. Nada há de tão grande que a ela não se curve, nada há de tão belo que não lhe contemple a beleza.

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