Lembro-me quando, no início desta década, foi lançado o filme Cidade de Deus. Na época eu trabalhava na Fundação Cultural Palmares, em Brasília, e, certo dia, estava reunido com alguns colegas de trabalho e alguém comentou que não gostou de ver a imagem do negro ligada àquela criminalidade cruel. Naquele momento, comentei que o aspecto que mais chamou a minha atenção foi o desprezo com que o poder público tratara àquela comunidade e a forma como, em virtude da ausência do estado, as lideranças da comunidade se formavam.
À medida era o crime, a frieza de praticá-lo com requintados atos de crueldade, e com tal frequência a ponto de banalizá-lo, materializando o seu clímax com a naturalização do homicídio e o comércio organizado das drogas.
O filme, na verdade, não é uma ficção, mas uma fotografia da realidade que se passara ali naquela comunidade num determinado momento da sua história. E por mais que o autor quisesse lhe dar termos de ficção, a realidade vivenciada nas favelas e morros do Rio de Janeiro cuidava de neutralizar esforços nesse sentido dirigidos.
Pelo contrário, Cidade de Deus, o filme, se configura agora como um estado elementar, quase caricatura romântica diante da realidade brutal desenhada hoje nas favelas, nos morros, do Estado do Rio de Janeiro.
Tamanho foi o desprezo, o descuido, a indiferença dos entes governamentais para com aquelas comunidades que o próprio descaso se encarregou de forjar ali as lideranças junto ao tráfico de drogas para cuidar daquela gente.
Gente que jamais fez parte do planejamento urbano daquela metrópole; gente cujos direitos foram, no mínimo, esquecidos pelas autoridades oficiais. Gente citadina sem lugar no plano diretor da cidade que escolhera para morar e trabalhar, para dizer que a ela pertence e, com o orgulho que o carioca tem de ali ter nascido. Gente, sobretudo rechaçada pela visão embaçada dos governantes de todas as esferas de poder que o estado democrático comporta.
Lá estão as favelas, os morros, um amontoado de barracos, construídos dos mais variados materiais que vão desde o papelão, passando pela tábua aproveitada de caixotes até a alvenaria. Lugares de arruamentos precários e tortuosos, sem traçados de ruas que ensejem qualquer tipo de planejamento, sem praças, sem cinemas, sem teatro, sem postos médicos, sem postos policiais, sem órgãos de assistência social, sem praças esportivas, sem parques com áreas verdes, sem centros de capacitação profissional e com todas as carências de direitos inalienáveis que todas as pessoas necessitam ter satisfeitos.
Até hoje qualquer assunto que se refira à favela é tratado pelas autoridades constituídas como caso de polícia.
Relegada à indiferença do poder público e da sociedade envolvente, das comunidades faveladas surgiu um poder paralelo cuja base financeira não se forjara de impostos e taxas cobradas dos moradores, mas da venda de drogas e de outras ilicitudes componentes da economia da contravenção, que encontrou nas comunidades carentes do Rio o seu mais prolífico habitat.
Como em qualquer parte do mundo, não há poder que se sustente sem o seu braço armado. Nos morros e favelas do Rio de Janeiro o poder emerso do comércio das drogas não se esqueceu das armas. E, para isso, foi buscar aliados no seio corrupto das forças armadas e em outros países. Por meio de contrabando ou simplesmente, através da compra a domicílio. Aliou-se ainda a guerrilheiros, e plantadores de coca. Com os primeiros buscou o abastecimento de armas, com os outros se colocou como interface comercial com a incubência de ser o elo que liga o produtor ao consumidor, completando, deste modo a cadeia produtiva das drogas.
Hoje, esse poder paralelo que se estabeleceu nessas comunidades cresceu tanto e, de tal forma, organizado, que o governo não pode mais se dar o luxo de ignorá-lo, como fez (ou faz?) com a maioria das pessoas que lá residem de forma pacífica e ordeira. E para infelicidade geral dos moradores dos morros e favelas, os lugares onde moram, agora viraram campos de batalha cotidianamente travadas ora entre o crime organizado entre si – facções criminosas disputando espaços de domínio comercial, ora essas facções se confrontam com a polícia.
Tudo que decorre desses confrontos só nos inclina a lamentações. Lamentamos por aqueles que morrem por serem atingidos por balas perdidas; lamentamos pelos trabalhadores que ficam impedidos de trabalhar por já não poderem exercer o direito de ir e vir. Lamentamos pelas crianças que perdem aulas quando precisam tanto de educação; lamentamos pelos policiais que são mortos nesses embates e deixam precocemente os seus familiares; lamentamos pela morte de jovens pobres e pretos que uma vez abatidos pela polícia são identificados apenas como bandidos, não por serem bandidos, mas por serem pobres e pretos. Lamentamos pelos turistas que vão ao Rio para desfrutar das suas lindas paisagens, das suas belezas naturais e se veem, de uma hora pra outra impedidos de visitar lugares maravilhosos. Lamentamos pela imagem que se forma do Brasil no exterior.
Entretanto, apesar de todo esse lamento, jamais podemos esquecer que toda essa violência é fruto de anos de indiferença dos poderes constituídos em relação a essas comunidades. Portanto, de nada adiantará lamentarmos por tantos danos sociais se as nossas autoridades não aprenderem que os direitos inalienáveis da pessoa humana não devem ser esquecidos em detrimento de grupos sociais desfavorecidos, enquanto as camadas sociais mais prósperas se comprazem na esbórnia da corrupção do dinheiro público.
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