sábado, 22 de setembro de 2012

Antônio Martins, um pai que a vida me deu...

Era agosto de 1981, acabara de me graduar em engenharia agronômica, não sabia o que fazer, queria um emprego, mas não tinha ideia de por onde começar.
Conversava com o saudoso Diquinho (amigo, jornalista prático, que me ensinou os primeiros acordes de cavaquinho na afinação de tenor), no batente da casa dele, quando um amigo apareceu. Era o saudoso Ivan Carvalho, meu colega de faculdade. Nem me cumprimentou, foi logo dizendo: - Prego, arranjei um emprego no estado e estou deixando a empresa de elaboração de projetos (Sponholz Planejamento e Projetos) que eu estava trabalhando. Como sei que gostas de elaborar projetos, pensei em ti para me substituir. O escritório ficava em Barra do Corda/MA e eu teria que viajar logo na segunda-feira. Detalhe, era sexta-feira, mas eu não tinha a menor condição de rejeitar aquela oportunidade. Fosse ela boa ou ruim, pouco importava, eu queria trabalhar na minha profissão.
Desci o bairro voando de alegria, contei a novidade à minha mãe, que me arranjou o equivalente a mais ou menos R$ 100,00. O suficiente para eu pagar a passagem de ida e a alimentação do primeiro dia. Desci do ônibus em frente ao Bar do Zé Cachimbo, não sabia sequer para que lado me dirigir. De repente ouço uma voz: - “O que tu fazes aqui menino chato”. Era Vilma Martins, minha contemporânea da Escola de Agronomia, que na verdade me achava chato mesmo. Eu vivia aporrinhando todo mundo na Escola. Fazia música pra um, colocava apelido noutro, fazia piada, gostava de fazer gracinhas na cantina. Num sábado conversávamos numa sala, enquanto esperávamos o professor chegar. De repente, entra a Vilma vestida numa calça jeans e uma blusa amarela. Não perdi tempo, cantarolei de pronto o samba: - “Olha blusa dela, olha a blusa dela, chegou a nega tanajura, com a blusa amarela”. Vilma, é claro, não gostou e saiu rápido da sala me chamando de menino enjoado, sob os risos da rapaziada toda que presenciava a cena.
Mas, naquela manhã de segunda-feira, na Barra do Corda, Vilma Martins teve o seu momento de gentileza comigo e eu, evidentemente, respondi à altura. Enquanto pegávamos as nossas malas (a minha era uma mochila tipo aquelas usadas no exército, verde oliva), ela disse que era nascida ali, que seus pais ali residiam e convidou-me a visitar a residência dos seus pais. Agradeci e a prometi que eu a visitaria. Ela ainda me ensinou para onde ficava o escritório e nos despedimos.
Além da Vilma Martins, eu tinha mais dois colegas da Barra do Corda que estudaram e se formaram juntos comigo – Edésio Miranda e Paulo Roberto Milhomem Nava. No meu primeiro dia de trabalho os dois me convidaram para conhecer as suas residências. Neste dia, eu almocei com o Nava e jantei na casa do Edésio. Mas, entre um momento e outro solicitei que eles me ensinassem a casa da Vilma Martins. Fomos à casa da Vilma, que foi muito gentil comigo, mas naquele dia eu já estava comprometido com os colegas, que aliás, eram amigos, costumávamos estudar juntos eu, Nava e o Edésio. Prometi à Vilma que voltaria no dia seguinte para almoçar com ela e assim o fiz.
Foi a partir daquele almoço que eu descobri o seu Antônio, como costumávamos chamar o Sr. Antônio dos Santos Martins, pai da Vilma Martins. Ficava sempre sentado numa espreguiçadeira (cadeira de embalo, ou cadeira preguiçosa), num canto da sala, conversando ou ouvindo música. O Sr. Antônio Martins era uma figura absolutamente ímpar naquela família, de pronto ficamos fascinados um com o outro. Logo no primeiro contato, conversamos sobre São Luís, História do Maranhão, religião, negritude e, sobretudo, de música – assunto que eu gosto muito até hoje.
Antônio Martins, daquele momento em diante passou a ser o meu grande interlocutor naquela casa, apesar da nossa diferença de idade, passávamos horas e horas conversando ou ouvindo músicas juntos. Ele tinha um excelente gosto musical, uma visão de mundo admirável e uma avidez imensa pela leitura. Lia tudo, tinha fascínio pela literatura universal. De Fiódor Dostoievski a Balzac, passando Por Julio Verne, Victor Hugo e outros, tudo ele leu.
Da sua discoteca ouvíamos Alcione Nazaré, Ângela Maria, Agnaldo Timóteo, Lupicínio Rodrigues, a orquestra do maestro Severino Araújo e tantos outros bons músicos brasileiros. Seu gosto por Jazz era refinado. Entre os discos de vinil que abrigava em sua discoteca, estavam Louis Armstrong, Duke Ellington, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Frank Sinatra, Sammy Davis Jr, dentre outros.
Seu Antônio era uma águia, olhava longe e devorava livros como se tentasse suprir-se das oportunidades que a vida não lhe dera em sua juventude. Pessoa sempre de bem com a vida, o bom humor lhe acompanhava onde quer que estivesse. Um menestrel, que adorava contar causos e casos. Era um ser enciclopédico, gostava da cultura de enciclopédia, de almanaque, mas esse era um conhecimento complementar.
Como anfitrião, o Sr. Antônio Martins era um gentleman, me deixava tão à vontade que eu nunca mais saí da sua casa. Fui ficando por lá, filando a boia dele e da dona Lúcia, sua esposa, que ele chamava carinhosamente de João. Aprendi muito com seu Antônio e, tenho certeza que as nossas conversas foram elos de adoção mútua. Ele me adotara como mais um filho do coração (ele tinha muitos) e eu o adotei como meu pai. Nunca tivemos a coragem de dizer isso, um ao outro, mas nos sentíamos assim. Amávamos-nos como pai e filhos se amam.
Tão forte era a nossa amizade que tendo em 1982 havia deixado a empresa Sponholz, retornei à São Luís, onde trabalhei na Secretaria de Agricultura até 1983, quando fui transferido para Barra do Corda. Em outubro deste ano eu recebi umas férias que não havia solicitado, terminada as férias, fui avisado da minha exoneração. Fiquei atônito, nada fiz para merecer ser mandado embora. Passado uns meses, Seu Antônio telefonou-me avisando que eu tinha sido readmitido no emprego. Voltei a trabalhar, mas logo fui embora para Brasília (setembro/1984) trabalhar no Ministério da Reforma e do Desenvolvimento Agrário (MIRAD). Passado muitos anos depois, eu soube que a minha exoneração deveu-se ao fato de ser filho do Sr. Antônio Martins. A ala política contrária a ele se fortalecera e via na minha demissão uma forma de prejudicá-lo. Mas, logo o Sr. Antônio Martins tratou de me devolver o emprego. Vejam que todos em Barrado Corda pensavam que eu era filho do Sr. Antônio Martins.
Gostava quando ele começava a filosofar enquanto conversávamos. Usava da filosofia para me ensinar sobre a vida. Não me aconselhava, era um amigo que se negava a dar sugestão na minha vida. Falava-me das coisas como se estivesse passando longe de mim, mas sabia que aquilo era uma lição. Ele era um mestre. Quando fazíamos algo de errado, ou dávamos uma mancada e pensávamos que ele não sabia, ele costumava avisar que sabia, falando com a dona Lúcia. Perguntava, a ela: João, tu sabias que o Deco fez tal coisa? João, o Luiz Fernando, agora está fazendo isso...? Então ficávamos de orelha em pé, já sabendo que ele não estava gostando desse ou daquele procedimento.
 O Sr. Antônio dos Santos Martins era um homem cuja história eu poderia escrever livros e livros, mas aqui quero apenas falar da sua influência na minha vida. Da benevolência dele e da dona Lúcia comigo. Ele nunca perguntou de onde eu vinha, para onde eu ia, ou deixaria de ir; quem eu era, quem eram os meus pais, se eu era verde, amarelo, azul, ou branco, apesar de nos identificarmos como homens negros. Ele participou do movimento negro nos anos 1950, com o médico Cesário Coimbra e outros. Eu participei da fundação do Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN).
Um dia eu tive fome e ele deu-me o que comer; tive sede e ele me disponibilizou água e vinho. Precisei de abrigo e ele poderia dar-me apenas um abrigo e eu estaria grato e satisfeito, contudo, ele foi além, me abrigando na sua casa, sob o calor da sua carinhosa e amiga família.
Como esquecer uma pessoa como esta? Como não lembrar os seus exemplos de vida? Pai de família exemplar, que teve um casamento de 62 anos, cujo fim só seu deu com a sua passagem para a vida eterna. Seu Antônio, lembro-me quando o senhor nos chamava a atenção para o fato de “sermos da vida apenas fiéis depositários”, pois que ela pertence a um ser superior. Pela consciência que o senhor tinha dessa verdade, tenho a certeza, que em cima dos seus 89 anos de vida, o senhor a devolveu ao seu verdadeiro dono, no último dia 19 de setembro, prestando contas de toda a sua benevolência e das obras que o senhor edificou na relação com cada um dos irmãos com os quais conviveu aqui na terra. A mim, além da eterna saudade, e das lembranças alegres dos momentos que compartilhei com o senhor, nada me resta senão agradecer, agradecer e agradecer por tudo que o senhor me fez sem pedir nada em troca. Quero agradecer também a toda a sua família pela forma como me acolheu e me aceitou até os dias atuais. Conosco permanecerá a certeza de que o senhor é uma luz que agora transfere o seu brilho da terra para o oriente eterno.

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quinta-feira, 13 de setembro de 2012

Erro de ataque

 
Fui surpreendido com a notícia de que os amigos Neymar, Alexandre Pires e Mister Catra participaram de um vídeo clipe do cantor Alexandre Pires,  fantasiados de gorilas. Mais surpreso eu fiquei com o ataque que algumas entidades do movimento negro lhes fizeram sob o argumento de que o jogador e os dois cantores protagonizaram atitude racista.
Fiquei frustrado com a acusação das entidades, esperava que elas tivessem um posicionamento mais cauteloso a respeito da brincadeira ousada dos artistas. Pela primeira vez no Brasil pessoas públicas negras se expuseram de forma lúdica e natural vestidos justamente de um animal que o mundo racista usa como referência para lhes insultar. O clipe é bobo, de ínfimo valor artístico, mas a atitude dos três poderia ser vista com mais cuidado, antes de qualquer acusação.
Lembrei-me da cena acontecida com o craque Roberto Carlos, num estádio da Europa, quando torcedores racistas jogavam-lhe bananas e ele chateado, constrangido, irritado com toda aquela asquerosa atitude, retirou-se do jogo. Não quero aqui de forma nenhuma minimizar o sofrimento do Roberto Carlos nem de qualquer outra pessoa, negra ou não, que já tenha sofrido ataques racistas. Eu próprio já me senti constrangido com atitudes dessa estirpe. Dói do solado do pé até o âmago da alma. Tanto que naquela oportunidade eu fiquei muito irritado e solidário à atitude do jogador.
No entanto, dois astros da música brasileira se juntaram ao craque santista e brincaram com o estereótipo que os babacas dos racistas sempre acionaram para insultar, minimizar a nossa condição humana, reduzir-nos à condição animalesca. Coitados, eles sequer sabiam da magnitude do tabu que eles estavam quebrando, mas, infelizmente, não estavam sós nessa. Alguns defensores dos direitos humanos, guardiões da liberdade dos afrodescendentes também não perceberam a grandeza do que fizeram Neymar, Alexandre Pires e Mister Catra. Estes quebraram os grilhões do senso comum, mostraram que pessoas negras, inclusive famosas, podem se despir da carapuça hipócrita sempre acionada sob a égide da insensatez, incensada pela insanidade dos que usam a imagem do macaco como o pior dos escárnios para se referir às pessoas negras. Jogaram o estigma contra o estigma, inconscientemente, é verdade, mas jogaram. Mesmo não estando cônscios da magnitude dos seus atos, eles abriram um caminho que bem pode servir de exemplo para outros brasileiros negros famosos ou não que toda vez que fazem algo que causa inveja aos racistas, são chamados por eles de macacos.
Pronto, agora esses neonazistas estão desarmados, porque ao invés de se constrangerem com seus antiquados e asquerosos insultos, os astros brasileiros agiram como se dissessem: - isso não pega conosco, para nós os gorilas são animais que merecem respeito e carinho, assim como o mico leão dourado. Não nos importamos com os ignorantes que nos comparam a eles, sabemos da importância deles e da condição humana que nos é inerente. Não nos sentimos diminuídos com a vossa atitude, apenas nos juntamos aos milhões de seres humanos que a abominam. Não vamos nos sentir ridicularizados quando vocês é que são ridículos ao tentarem se enganar quanto a nossa condição. Dizem que somos macacos (logo, sem raciocínio lógico), mas a vida caminha contra a maré racista e os coloca sempre diante de negros que se sobressaem na sala de aula, no esporte, nas telas dos cinemas, no teatro, na literatura, na música, nas ciências.
Às vezes, acredito que me devo um escrito mais profundo sobre o racismo. De imediato, via-o como algo que poderia ser explicado pelo viés cultural, todavia, hoje eu o percebo que a sua explicação tem algo além, algo de patológico, que carece de terapia pelo fato de se configurar como uma luta interior do próprio racista que teima em não acreditar no óbvio; que ao constatar a racionalidade do irmão negro, teima em não aceitá-la, como se isso fosse lhe fazer algum mal. Um estado doentio de criação mental de algo que o próprio criador não acredita, porém insiste em afirmar – a luta entre a falsa ideia e os fatos que a nega. Essa teima interior da verdade constatada versus negação da constatação continuará até que o enfermo se perceba como tal e procure o tratamento adequado.
Vejam no caso dos europeus que discriminam os brasileiros: - eles vibram com as nossas jogadas, pasmam com os gols de placa que fazemos e, por mais que queiram cobrir o sol com a peneira do racismo jamais conseguirão inibir ou invisibilizar o brilho do nosso talento, da arte do povo negro, ou afrodescendentes como preferem os ditos politicamente corretos.
Para encurtar conversa, não fosse o estado de inconsciência, poderíamos comparar o feito dos três astros brasileiros à façanha que os negros americanos fizeram nos anos 1960 com o “Black is beaultiful” e o black power. Sem perceberem, os brasileiros foram além, ao dançarem vestidos de gorilas. Foi como se, sem a consciência do fato, dissessem: “Somos negros lindos, mesmo vestidos de macacos”! Danem-se os racistas.
Só lamentamos que os defensores dos direitos humanos não tivessem atentado para o fato, que mereceu uma leitura mais compreensiva. Fizeram uma leitura apressada e incorreram ao equívoco que decorreu, creio, da falta de uma análise mais acurada.

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