Era agosto de 1981, acabara de me
graduar em engenharia agronômica, não sabia o que fazer, queria um emprego, mas
não tinha ideia de por onde começar.
Conversava com o saudoso Diquinho
(amigo, jornalista prático, que me ensinou os primeiros acordes de cavaquinho
na afinação de tenor), no batente da casa dele, quando um amigo apareceu. Era o
saudoso Ivan Carvalho, meu colega de faculdade. Nem me cumprimentou, foi logo
dizendo: - Prego, arranjei um emprego no estado e estou deixando a empresa de
elaboração de projetos (Sponholz Planejamento e Projetos) que eu estava
trabalhando. Como sei que gostas de elaborar projetos, pensei em ti para me
substituir. O escritório ficava em Barra do Corda/MA e eu teria que viajar logo
na segunda-feira. Detalhe, era sexta-feira, mas eu não tinha a menor condição
de rejeitar aquela oportunidade. Fosse ela boa ou ruim, pouco importava, eu
queria trabalhar na minha profissão.
Desci o bairro voando de alegria,
contei a novidade à minha mãe, que me arranjou o equivalente a mais ou menos R$
100,00. O suficiente para eu pagar a passagem de ida e a alimentação do
primeiro dia. Desci do ônibus em frente ao Bar do Zé Cachimbo, não sabia sequer
para que lado me dirigir. De repente ouço uma voz: - “O que tu fazes aqui
menino chato”. Era Vilma Martins, minha contemporânea da Escola de Agronomia,
que na verdade me achava chato mesmo. Eu vivia aporrinhando todo mundo na
Escola. Fazia música pra um, colocava apelido noutro, fazia piada, gostava de
fazer gracinhas na cantina. Num sábado conversávamos numa sala, enquanto
esperávamos o professor chegar. De repente, entra a Vilma vestida numa calça
jeans e uma blusa amarela. Não perdi tempo, cantarolei de pronto o samba: -
“Olha blusa dela, olha a blusa dela, chegou a nega tanajura, com a blusa
amarela”. Vilma, é claro, não gostou e saiu rápido da sala me chamando de
menino enjoado, sob os risos da rapaziada toda que presenciava a cena.
Mas, naquela manhã de
segunda-feira, na Barra do Corda, Vilma Martins teve o seu momento de gentileza
comigo e eu, evidentemente, respondi à altura. Enquanto pegávamos as nossas
malas (a minha era uma mochila tipo aquelas usadas no exército, verde oliva),
ela disse que era nascida ali, que seus pais ali residiam e convidou-me a
visitar a residência dos seus pais. Agradeci e a prometi que eu a visitaria.
Ela ainda me ensinou para onde ficava o escritório e nos despedimos.
Além da Vilma Martins, eu tinha
mais dois colegas da Barra do Corda que estudaram e se formaram juntos comigo –
Edésio Miranda e Paulo Roberto Milhomem Nava. No meu primeiro dia de trabalho
os dois me convidaram para conhecer as suas residências. Neste dia, eu almocei
com o Nava e jantei na casa do Edésio. Mas, entre um momento e outro solicitei
que eles me ensinassem a casa da Vilma Martins. Fomos à casa da Vilma, que foi
muito gentil comigo, mas naquele dia eu já estava comprometido com os colegas,
que aliás, eram amigos, costumávamos estudar juntos eu, Nava e o Edésio.
Prometi à Vilma que voltaria no dia seguinte para almoçar com ela e assim o
fiz.
Foi a partir daquele almoço que
eu descobri o seu Antônio, como costumávamos chamar o Sr. Antônio dos Santos
Martins, pai da Vilma Martins. Ficava sempre sentado numa espreguiçadeira (cadeira
de embalo, ou cadeira preguiçosa), num canto da sala, conversando ou ouvindo
música. O Sr. Antônio Martins era uma figura absolutamente ímpar naquela
família, de pronto ficamos fascinados um com o outro. Logo no primeiro contato,
conversamos sobre São Luís, História do Maranhão, religião, negritude e,
sobretudo, de música – assunto que eu gosto muito até hoje.
Antônio Martins, daquele momento
em diante passou a ser o meu grande interlocutor naquela casa, apesar da nossa
diferença de idade, passávamos horas e horas conversando ou ouvindo músicas
juntos. Ele tinha um excelente gosto musical, uma visão de mundo admirável e
uma avidez imensa pela leitura. Lia tudo, tinha fascínio pela literatura
universal. De Fiódor Dostoievski
a Balzac, passando Por Julio Verne, Victor Hugo e outros, tudo ele leu.
Da sua discoteca ouvíamos Alcione
Nazaré, Ângela Maria, Agnaldo Timóteo, Lupicínio Rodrigues, a orquestra do
maestro Severino Araújo e tantos outros bons músicos brasileiros. Seu gosto por
Jazz era refinado. Entre os discos de vinil que abrigava em sua discoteca,
estavam Louis Armstrong, Duke Ellington, Ella Fitzgerald, Sarah Vaughan, Frank
Sinatra, Sammy Davis Jr, dentre outros.
Seu Antônio era uma águia, olhava
longe e devorava livros como se tentasse suprir-se das oportunidades que a vida
não lhe dera em sua juventude. Pessoa sempre de bem com a vida, o bom humor lhe
acompanhava onde quer que estivesse. Um menestrel, que adorava contar causos e
casos. Era um ser enciclopédico, gostava da cultura de enciclopédia, de
almanaque, mas esse era um conhecimento complementar.
Como anfitrião, o Sr. Antônio
Martins era um gentleman, me deixava tão à vontade que eu nunca mais saí da sua
casa. Fui ficando por lá, filando a boia dele e da dona Lúcia, sua esposa, que
ele chamava carinhosamente de João. Aprendi muito com seu Antônio e, tenho
certeza que as nossas conversas foram elos de adoção mútua. Ele me adotara como
mais um filho do coração (ele tinha muitos) e eu o adotei como meu pai. Nunca
tivemos a coragem de dizer isso, um ao outro, mas nos sentíamos assim.
Amávamos-nos como pai e filhos se amam.
Tão forte era a nossa amizade que
tendo em 1982 havia deixado a empresa Sponholz, retornei à São Luís, onde
trabalhei na Secretaria de Agricultura até 1983, quando fui transferido para
Barra do Corda. Em outubro deste ano eu recebi umas férias que não havia
solicitado, terminada as férias, fui avisado da minha exoneração. Fiquei
atônito, nada fiz para merecer ser mandado embora. Passado uns meses, Seu
Antônio telefonou-me avisando que eu tinha sido readmitido no emprego. Voltei a
trabalhar, mas logo fui embora para Brasília (setembro/1984) trabalhar no Ministério
da Reforma e do Desenvolvimento Agrário (MIRAD). Passado muitos anos depois, eu
soube que a minha exoneração deveu-se ao fato de ser filho do Sr. Antônio Martins.
A ala política contrária a ele se fortalecera e via na minha demissão uma forma
de prejudicá-lo. Mas, logo o Sr. Antônio Martins tratou de me devolver o
emprego. Vejam que todos em Barrado Corda pensavam que eu era filho do Sr.
Antônio Martins.
Gostava quando ele começava a
filosofar enquanto conversávamos. Usava da filosofia para me ensinar sobre a
vida. Não me aconselhava, era um amigo que se negava a dar sugestão na minha
vida. Falava-me das coisas como se estivesse passando longe de mim, mas sabia
que aquilo era uma lição. Ele era um mestre. Quando fazíamos algo de errado, ou
dávamos uma mancada e pensávamos que ele não sabia, ele costumava avisar que
sabia, falando com a dona Lúcia. Perguntava, a ela: João, tu sabias que o Deco
fez tal coisa? João, o Luiz Fernando, agora está fazendo isso...? Então
ficávamos de orelha em pé, já sabendo que ele não estava gostando desse ou
daquele procedimento.
O Sr. Antônio dos Santos Martins era um homem
cuja história eu poderia escrever livros e livros, mas aqui quero apenas falar
da sua influência na minha vida. Da benevolência dele e da dona Lúcia comigo.
Ele nunca perguntou de onde eu vinha, para onde eu ia, ou deixaria de ir; quem
eu era, quem eram os meus pais, se eu era verde, amarelo, azul, ou branco,
apesar de nos identificarmos como homens negros. Ele participou do movimento
negro nos anos 1950, com o médico Cesário Coimbra e outros. Eu participei da
fundação do Centro de Cultura Negra do Maranhão (CCN).
Um dia eu tive fome e ele deu-me
o que comer; tive sede e ele me disponibilizou água e vinho. Precisei de abrigo
e ele poderia dar-me apenas um abrigo e eu estaria grato e satisfeito, contudo,
ele foi além, me abrigando na sua casa, sob o calor da sua carinhosa e amiga
família.
Como esquecer uma pessoa como esta? Como não
lembrar os seus exemplos de vida? Pai de família exemplar, que teve um
casamento de 62 anos, cujo fim só seu deu com a sua passagem para a vida
eterna. Seu Antônio, lembro-me quando o senhor nos chamava a atenção para o
fato de “sermos da vida apenas fiéis depositários”, pois que ela pertence a um
ser superior. Pela consciência que o senhor tinha dessa verdade, tenho a
certeza, que em cima dos seus 89 anos de vida, o senhor a devolveu ao seu
verdadeiro dono, no último dia 19 de setembro, prestando contas de toda a sua
benevolência e das obras que o senhor edificou na relação com cada um dos
irmãos com os quais conviveu aqui na terra. A mim, além da eterna saudade, e
das lembranças alegres dos momentos que compartilhei com o senhor, nada me
resta senão agradecer, agradecer e agradecer por tudo que o senhor me fez sem
pedir nada em troca. Quero agradecer também a toda a sua família pela forma como
me acolheu e me aceitou até os dias atuais. Conosco permanecerá a certeza de
que o senhor é uma luz que agora transfere o seu brilho da terra para o oriente
eterno.
Obrigado por comentar.
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