Embora não conste no meu registro
de nascimento, eu tive um pai. Chamava-se Antônio de Lídia, mas, na verdade,
Lídia era o nome da minha avó paterna, que eu não conheci. Parece que o
sobrenome dele era Trancoso. Falo parece, porque como não tive muita
proximidade com o meu pai, não sei quase nada sobre ele.
Engraçado que dele só tenho boas
referências apesar de nunca ter vivido momentos com ele, de nunca ter passado
um só dia ao lado dele. As pessoas falavam que ele era um excelente marceneiro,
que trabalhava como um artista, que tinha método para tudo, até mesmo para
bater um prego. Dizia-se também que ele foi um bom filho, que ele mesmo preparou
o caixão que a mãe dele se enterrou. Que foi, segundo comentavam, uma obra de
arte feita em madeira e vidro.
A minha mãe me dizia que ele era
o meu pai e que eu tinha que tomar a bênção para ele e eu a obedecia
prontamente. Ele, por sua vez, sempre me abençoava alegre e satisfeito. Daí a
imagem boa que eu trago dele. Ele era uma pessoa de bem com a vida. Em Rosário,
as pessoas com as quais eu convivia, todas falavam bem dele.
Dizem que pra tudo ele tinha uma
tirada, uma saída, uma forma de se safar. Certo dia, ele estava no comércio dos
Caires, na Rua de Cima (bairro de Rosário) e lá estava uma turma de rapazes
bebendo. Aí ele encostou ali para bater um papo com a rapaziada e tomar uma
dose de conhaque, quando um dos rapazes, só para dar uma gozada nele,
perguntou: - seu Lídia, por que o senhor é tão feio assim? E ele respondeu sem
pestanejar: - Eu era um rapaz bonito, sempre me vesti bem e era muito querido
pelas moças da minha época, mas um dia, quando eu estava trabalhando no telhado
da igreja de Nossa Senhora do Rosário, escorreguei e caí batendo a cabeça no
chão de tal forma que transformou a minha fisionomia e, eu me salvei por graça
da santa, mas fiquei assim, feio. Depois da explicação do seu Lídia, toda a vez
que os rapazes da Rua de Cima viam alguma pessoa que reputavam como feia,
exclamavam: - Hum, essa deve ter caído de cima da igreja!
De seu Lídia, diziam também que
ele não falava certas palavras exatamente como elas eram grafadas. Tijolo ele
chamava apenas de jolo, porque segundo falavam, ele dizia que não se tratava de
um tio seu; cueca, ele chamava de eca, porque dizia não falava palavrão em
público; por esse mesmo motivo quando se referia ao cuscuz, preferia chamar de
duas talhadas. Nestes termos ele chegava mesmo a ter um vocabulário particular
para designar certos termos existentes no nosso vocabulário.
Saí de Rosário aos 15 anos para
estudar em São Luís. Não tive mais contato com o meu pai. Como entre nós não
foi cultivada a proximidade, uma relação estreita entre pai e filho, a minha
saída de Rosário significou uma separação para sempre. Nunca o procurei e
vice-versa.
Certa vez, dia de finados,
cheguei ao cemitério de Rosário para visitar a sepultura da minha mãe e,
enquanto acendia velas e rezava, uma senhora idosa cuidava de uma sepultura
próxima. Quando terminei de rezar eu a cumprimentei e ela falara que estava
cuidando da sepultura do compadre dela, já que ele não deixara ninguém que
pudesse fazer isso. E lamentava: - Logo ele que ia ao enterro de todo mundo
nesta Rosário, quando morreu não tinha ninguém sequer para carregar o seu
caixão. Então eu perguntei quem era o seu compadre e ela me confidenciou que se
tratava do Antônio de Lídia. Fiquei mudo, não sabia o que dizer. Rezei em
silêncio e ofereci as minhas orações à alma dele. Não disse a ela que era o
filho dele.
Aquela sena ficou presa na minha
memória para sempre. Quando o meu pai ficou velho eu já era um rapaz e, se
tivesse algum contato com ele, talvez até pudesse cuidar dele, mas eu não tive
a escolha e sequer soube da vida dele depois que fui embora para São Luís. A
relação com o meu pai me fez depreender que na relação entre pais e filhos é
necessário que se cultive a amizade, o respeito, o carinho no convívio do
dia-a-dia, que façamos, um para com o outro, ações que sejam traduzidas como
amor, afeição, por ambos. Caso contrário, os cuidados que foram desperdiçados
ou omitidos no início farão falta no final. Nada melhor do que a oração de São
Francisco para traduzir a minha conclusão. É possível que assim como a presença
dele fez falta na minha vida, principalmente, durante a infância e a
adolescência; a minha presença também tenha feito falta para ele em algum
momento.
Antônio de Lídia, onde quer que
você esteja eu desejo que o Grande Arquiteto do Universo te ilumine no Oriente
onde repousa a tua benfazeja alma.
Obrigado por comentar.
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