Acabou a hipocrisia, ninguém mais vai jogar o lixo debaixo do
tapete, porque lixo é lixo e deve ser mostrado como tal. Então, quando eu falar do lixo que me suja, ou melhor, que
me ofende, ninguém vai dizer à boca pequena que eu estou ficando louco, que eu
vejo lixo em tudo. Mas também, agora não podemos dizer que nos ofender jogando
lixo, ou pior, racismo sobre nós, é uma coisa isolada. Só não mudou o disfarce.
Aliás, nisso o Brasil é craque. Aqui sempre se soube disfarçar racismo. Antes,
eles nos chamavam de pretos fedorentos, agora nos insultam de fedorentos, como
se isso fizesse alguma diferença.
A torcida do Grêmio vai ficar na história do
Brasil como inventora do novo racismo brasileiro - explícito, vexaminoso,
constrangedor e, sobretudo, asqueroso.
Ficam no ar algumas interrogações? O Grêmio de Porto Alegre é um time só
de brancos? Não há diretores negros, torcedores negros, simpatizantes negros?
Por acaso, os torcedores, diretores e jogadores negros do Grêmio veem esse caso
manifesto de racismo da torcida, como um caso isolado, que não os atinge?
E os demais jogadores negros do Brasil, onde estão? Apenas o goleiro
Aranha está sendo insultado? Será que eles já pensaram como ficaria o futebol
brasileiro sem nenhum jogador negro? Será que eles já pensaram em experimentar
ficar apenas uma rodada do campeonato brasileiro sem jogar, para que o Brasil
racista veja como fica o nosso futebol sem os jogadores negros? Será que eles
vão continuar se comportando como um bando de hipócritas, alienados,
indiferentes aos insultos sofridos pelo colega de profissão?
Às vezes me condeno e até peço desculpas aos meus filhos por ficar
repetindo que essa raiva que se manifesta contra o negro brasileiro remanesce
do regime escravocrata, das lutas entre escravistas e abolicionistas, quando de
um lado exigia-se que o governo brasileiro indenizasse os senhores de escravos
porque estes fizeram grandes investimentos naquelas “peças” de trabalho; o
outro lado, sabiamente, respondia que a escravidão era um crime vergonhoso e
que nenhum crime era merecedor de indenização, porque, ao contrário do que
alegavam os senhores de escravos, as pessoas escravizadas eram seres humanos
iguais a eles e não peças de trabalho, propriedade absoluta deles, como
erroneamente pensavam.
Acredito e defendo a ideia de que da derrota da tese escravagista
emergiu, da parte dos expropriados da mão de obra escravizada, o sentimento de
submeterem os negros libertados à falta de qualquer instrumento de progresso
humano ou poder: terra, educação, empregos, ou qualquer outro que eles de algum
modo pudessem impedir de forma manifesta ou disfarçada. Defendiam que o negro
libertado teria uma vida pior do que na escravidão. Por isso, pretendiam
submeter os negros a uma vida infernal, com o intuito de lhes fazerem
retroceder à escravidão. A prática do racismo brasileiro era também um
componente da dominação de uma classe social sobre a outra, mas uma classe era
branca e a outra negra, por isso, no Brasil o preconceito de classe e o de cor
são, praticamente, a mesma coisa. De modo geral, toda vez que alguém discrimina
uma pessoa pobre no Brasil, está discriminando uma pessoa negra ou não branca.
Quero deixar aqui alguns alertas. O primeiro é de que esse não é um fato
isolado, pelo contrário, é algo que se repete e merece atenção sociológica dos
estudiosos que tratam da questão. O segundo, é que esse tipo de fato merece uma
reação à altura, algo que venha inibir esse tipo de prática. E, quando falo
numa reação, não estou me dirigindo às vítimas somente, mas a todos os homens e
mulheres que não pactuam com procedimentos racistas, inclusive, as autoridades
competentes. O terceiro, é pelo fato de tratar-se de um caso que necessita de
detida investigação, demandando inclusive de verificar-se a relação com o
momento em que estamos vivendo no Brasil, onde a melhoria da distribuição de
renda propiciou o aumento da classe média e, por consequência, brancos e negros
tiveram que conviver (poderíamos dizer dividir também) em espaços que outrora
somente os brancos dominavam. Vejam que a raiva que se manifesta no estádio
contra a criatura, também se manifesta em outros fóruns contra o criador.
Por último, quero deixar claro que todas as formas de racismo são
abomináveis, porém, a vítima quando tem provas de quem e como foi
agredida fica mais fácil de protestar, denunciar, processar, se defender. Caso
contrário, quando se trata de uma prática camuflada, a vítima fica de mãos atadas
e, muitas vezes, ridicularizada pelos
próprios agressores. Então, se já não escondemos o lixo debaixo do tapete fica
mais fácil varrê-lo e colocá-lo na lixeira. A realidade é indicativa de que
agora a fratura está exposta, isso inspira muita preocupação.