sexta-feira, 5 de setembro de 2014

O novo lado do samba[1]

Já vai longe o tempo em que o samba no Maranhão era feito na calçada por grupos de voluntários que se juntavam com muitos instrumentos de percussão e nenhum ou quase nenhum instrumento de corda. Aquele samba em que o volume do som dos tambores aumentava conforme o volume alcóolico consumido pelos sambistas.
Da mesma forma, estamos muito distantes do tempo em que os grupos de samba, as chamadas roda de samba, emergiam dentro das agremiações carnavalescas, principalmente, nas escolas de samba. Falo dos tempos em que os grupos surgiam dentro de uma comunidade que se orgulhava de saber levar o samba no pé e batia no peito ao afirmar que fazia parte dessa ou daquela escola de samba. Na verdade, a escola de samba era, de certa forma, tão  atuante no âmbito da comunidade que esta emprestava características àquela e vice-versa. Lembro que certa vez um amigo se reclamava para mim, dizendo que no bairro de São Pantaleão era muito difícil levar adiante as construções ou reformas de casas no período de dezembro a fevereiro. Dizia ele, que alguns operários, como marceneiros, por exemplo, quando o carnaval se aproximava, deixavam as obras em que trabalhavam e diziam que iam trabalhar de graça para a Turma do Quinto e só retornariam após o carnaval. O meu amigo, ao tecer este comentário, mostrava-se possesso. Mais isto, de fato, representava o amor, a paixão que as pessoas tinham pelas agremiações carnavalescas.
E as denominações dos sambistas: Raimundo da Flor, José da Favela, João da Mangueira, Pedro da Turma do Quinto. Era com orgulho que as pessoas demonstravam o seu pertencimento à escola de samba, por isso, os sambistas ficavam conhecidos, muitas vezes, pelo nome também da escola da qual fazia parte. E assim, os grupos de sambistas iam se formando. Primeiro, as duplas, as trincas nos anos 1940 e 1950. Depois os quartetos, os grupos mais numerosos, enfim. Surdo, surdão, contratempo, retinta, cabaça, reco-reco, pandeiro.  Estes eram alguns dos instrumentos. Quando aparecia um cavaquinhista, ou violonista no samba, a turma vibrava, embora os instrumentos de cordas ficassem quase sempre encobertos sob o alto volume de tanta percussão. Mas, nesses nichos de percussionistas brilhantes existiam preciosidades. Grupos capazes de fazer samba de primeiríssima qualidade, com percussão e corda, ou mesmo só percussão, com tanta harmonia que os craques preferiam assobiar os sambas, ao invés de cantar. Quem viu pode dizer – era indubitavelmente lindo, maravilhoso.
A garra com que os participantes das escolas de samba desfilavam, era simplesmente, contagiante. Lembro-me de quando a Turma do Quinto desfilou com o enredo A Praia Grande, que esplendor. Ali eu fiquei extasiado com o trabalho daquele que eu reputo como o maior carnavalesco do Brasil – Tácito Borralho. Esse cara é fantástico. Mas, ao que os sinais hodiernos indicam, foi-se o tempo em que as pessoas se orgulhavam de pertencer aos grupos carnavalescos e, em que estes eram o lócus primordial do samba.
Hoje, os grupos de samba se reinventaram. Nascem em bairros sem nenhuma tradição de samba, no seio de uma classe média, que possui instrumentistas que passaram por escolas de música, leem partituras, compram instrumentos caríssimos. No caso dos de corda, são fabricados pelas mais refinadas luterarias do país. Banjos, cavaquinhos e bandolins customizados, violões internacionais – todos caríssimos. Aliás, cabe salientar que hoje o Maranhão possui luterarias que são referências nacionais, pela excelente qualidade dos instrumentos que fabricam.
Samba nas quadras das escolas de samba? Só na temporada carnavalesca. Durante o ano inteiro o pagode rola nos bares refinados da Ilha, nos clubes sociais remanescentes, nas praias, nos eventos sociais familiares, nos bailes de formatura. Os músicos são profissionais e muitos são os que vivem da música. Os ensaios não são mais na quadra da escola, no fundo de quintal dos componentes, na sala da casa, causando incômodo aos vizinhos. Agora, os ensaios são realizados em estúdios apropriados de onde os decibéis ficam contidos entre quatro paredes.
Também, nada de faixas nos postes, cartazes nas paredes, ou pinturas nas ruas anunciando os eventos, agora os sambas são anunciados pelas redes sociais. Grupos de samba como o de  Nivaldo, os Madrillenus, Feijoada Completa, são formados por músicos com competência para tocarem em qualquer canto do país, ou no exterior. A formação também mudou. Atualmente, os grupos têm uma formação que, genericamente, apresenta um violão de seis ou de sete cordas, banjo e/ou cavaquinho, bateria, tantã e/ou repique, pandeiro. Dentro desse modelo, os percussionistas inserem instrumentos que funcionam como acessórios adicionais, como tumbadora, tamborins, agogô, entre outros. A flauta é o instrumento de sopro que de vez em quando aparece em um ou em outro grupo mais refinado.
Pela qualidade que apresentam os grupos de samba da Ilha, hoje, quando os cantores desse gênero vêm a São Luís, preferem tocar com os músicos da terra, porque estes têm excelente qualidade e evitam custos adicionais com transporte e cachê para músicos vindos de fora, o que maximiza os ganhos dos profissionais que vêm se apresentar na Ilha.
Como podemos observar, o samba, em São Luís do Maranhão, assimilou transformações ao longo do tempo, o que vemos como algo natural, mas as transformações havidas não deformaram a sua essência (tempo, compasso, o ritmo convidativo à dança) e, por isto, continua muito gostoso. Mas eu ainda sinto saudades daquelas rodas de samba na Turma do Quinto, em que Gabriel Melônio, sempre acompanhado de Gari do Cavaco, cantava sambas ontológicos notabilizados pela voz do saudoso Roberto Ribeiro. Aqueles sambas em que o Quinto apresentava como atração o grande Jamelão, que começava cantar às 11 da noite, com cara de quem não passaria das duas da manhã, e chegava às 6 cantando: “Poeira, ô, poeira/o samba vai levantar poeira”.
É impossível não se lembrar daquelas noites maravilhosas em que eu amanhecia na Turma do Saco, com o meu amigo Luís Carlos Pinto e tantos outros, cantando sambas de Chico, Martinho, Paulinho da Viola, ou aquele samba de Billy Blanco que dizia: “Não fala com pobre, não dá mão a preto, não carrega embrulho/pra que tanta pose doutor/pra que tanto orgulho/A bruxa que é cega esbarra na gente e a vida estanca/Se o enfarto lhe pega doutor/acaba essa banca”. Saudáveis as mudanças que nós alcançamos sem modificarmos, contudo, a nossa essência. Por tudo, eu digo: salve o músico maranhense!



[1] Escrito em Santa Inês, em 02/09/2014.
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