domingo, 7 de setembro de 2014

Canto de improviso, uma vertente que sobrevive ao tempo graças a memória oral[1]

O Maranhão é terra de versejadores, poetas, compositores populares, pessoas que fazem versos instantâneos, também ditos de improviso, ou repentes. Aqui, creio que é uma tradição surgida na própria música maranhense, das manifestações musicais do nosso povo, o povo negro. Assim, a dança do Pela Porco, em Rosário, o Tambor de Crioula, em todo o Estado, o Coco Pirinã, o toque de caixa da Festa do Divino, o Tambor de Mina (que não deve ser confundido com o tambor da Casa das Minas), o samba de roda. Todas as manifestações musicais, de modo geral, são eivadas de momentos em que seus participantes são levados a fazer versos momentâneos para homenagear ou falar de uma situação, uma pessoa, o momento, ou simplesmente para rimar com um tema posto na roda. Arriscaria a dizer que esta é uma tradição que chegou aqui com o povo negro e é provável que se repita em outros países, a exemplo do que acontece com o jazz, nos Estados Unidos da América. É comum, neste gênero musical, músicos e/ou cantores fazerem improviso cantando ou tocando.
No Brasil, especificamente no samba, o verso de improviso se confunde com o partido alto, uma vez que esta linha do samba tem um tema básico, um refrão que se repete à medida que se canta versos correlatos, ou não. Às vezes o verso básico é apenas um motivo para que se façam os demais versos. O partido alto que ouvimos nas emissoras de rádio, nos discos, assistimos cantores e compositores interpretando na televisão, tem começo, meio e fim. Poderíamos até dizer que muitos são originários de versos de improviso que foram registrados e posteriormente, gravados.
A maioria dos versos de improvisos cantados no cancioneiro popular brasileiro se reproduz por meio da memória oral, no tempo e no espaço. Daí deriva o grande número de músicas (toadas, cirandas, cocos, tambor de mina, tambor de crioula e tantos outros gêneros musicais) ditas de domínio popular. Essas músicas, como sabemos, foram um dia compostas por alguém que as cantavam em determinados lugares e, dali se espalharam pelo mundo sem que essas pessoas nunca as tenham escrito ou reclamado para si a autoria. Porque são músicas feitas sem essa intenção. Mas apenas para alegrar uma comunidade, um grupo social, num momento de celebração de um culto, de homenagem a um santo, ou uma santa, numa festa comunitária, ou outra ocasião de lazer qualquer, ou outra situação que enseje o canto.
Há ocasiões em que  versejadores amigos, se colocam de lados diferentes e cantam entre si os conhecidos versos de repique. Àqueles que são feitos para destrato dos parceiros, “opositores”. De fato, são feitos com o intuito de entreter pessoas que os assistem,  provocar risos, dividir plateia, causar ovação. Isto é comum entre os violeiros do nordeste brasileiro, autodenominados poetas, pelos cantadores ou cantores de embolada, pelos cantadores de coco, sambistas. A dupla Castanha e Caju é um exemplo de artistas que lançam mão do verso de repique para encantar plateias, fãs, admiradores deles e/ou do gênero.
No samba é muito comum fazer-se o verso de improviso entre amigos, como forma de verificar-se o “fôlego”, a capacidade de improviso dos bambas presentes na roda. O samba flui por horas e horas sob o mesmo refrão, que, muitas vezes, pode ser mudado para evitar a monotonia.
No Rio de Janeiro, o saudoso João Nogueira gostava muito dessa vertente do samba e, segundo dizem, não raras vezes, ele costumava juntar versejadores de diversas escolas de samba, diversos bairros para se confraternizarem cantando samba de improviso. Nesses eventos, costuma-se dar um tema, um verso, um refrão como parâmetro dos poetas que vão fazendo os seus versos individualmente e, logo depois, todos cantam o refrão, que é seguido do verso feito pelo compositor seguinte e, assim sucessivamente. O sambista que errar, não conseguir fazer o verso redondo, ou seja, com a rima correta, ou, simplesmente, se embaraçar, não fizer verso algum, sai da roda. Assim, segue o samba até que fique apenas um versejador.
O saudoso Aniceto do Império (Império Serrano, escola de samba do Rio de Janeiro) notabilizou-se pela sua capacidade ímpar de fazer versos de improviso. Almir Guineto também é um compositor com enorme recurso de improvisação. Arlindo Cruz, Xande de Pilares e, provavelmente, na cidade maravilhosa há milhares de sambistas anônimos que possuem talento para improvisar.
Acredito que na arte de improvisar no samba, o Maranhão ainda não conheceu poeta, compositor, sambista tão espetacular, quanto o nosso saudoso Cristóvão Colombo, da Madre de Deus, e da Turma do Quinto, também conhecido como Alô Brasil, como referência da sua participação do programa de televisão homônimo dirigido pelo apresentador Flávio Cavalcante. Cristóvão era fabuloso, tinha voz privilegiada, muito recurso na construção de rimas, uma objetividade para arrolar em seus versos elementos constitutivos do momento e, ao mesmo tempo, capaz de emoldurar seus versos com alusões poéticas a formas subjetivas, que entre um gole e outro, era capaz de encantar aqueles que tiveram o privilégio de vê-lo cantando. Vejo com muito pesar o fato de Cristóvão Colombo não ter deixado registro da sua obra condizente com a magnitude de tudo que ele compôs, mas, felizmente, deixou alguma coisa registrada.
Atualmente, em São Luís, vejo  o Chico Chinês como pessoa que tem uma capacidade imensa de improviso. Chico Chinês é um desses sambistas natos, com o samba na veia, como se costuma dizer. Percussionista de primeiríssima grandeza, amante da boa música maranhense, compositor, cantor, músico de sensibilidade sem igual, capaz de catar pérolas musicais de autores maranhenses e reproduzi-las, ou melhor, divulga-las no trabalho do grupo Espinha de Bacalhau, em parceria com Neto Peperi e outros bambas de igual magnitude. Chico Chinês constitui um desses guerreiros do samba, que mesmo distante da mídia, e sendo objeto da incompreensão de alguns, faz um trabalho que contribui para eternização desse ritmo chamado samba. Seria de muito bom alvitre se nosso querido Chico Chinês registrasse os seus magníficos versos, assim as futuras gerações poderiam ter acesso a obra desse sensível compositor.
O mais interessante de tudo isto, é que o verso de improviso evolui nos mais distintos rincões do território brasileiro, composto e cantado por pessoas anônimas, muitas das quais excelente compositoras, sem trato com as letras e, para além do que escrevo agora, ou do venha a escrever depois, estão fazendo improvisos e alegrando o povo em alguma manifestação cultural da mais legítima expressão da nossa brasilidade. Salve os poetas anônimos do Brasil. Salve todos os versejadores brasileiros!


[1] Escrito por Luiz Fernando do Rosário Linhares, em Santa Inês, em 06 de setembro de 2014.
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