sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Eu e o meu pai




Embora não conste no meu registro de nascimento, eu tive um pai. Chamava-se Antônio de Lídia, mas, na verdade, Lídia era o nome da minha avó paterna, que eu não conheci. Parece que o sobrenome dele era Trancoso. Falo parece, porque como não tive muita proximidade com o meu pai, não sei quase nada sobre ele.
Engraçado que dele só tenho boas referências apesar de nunca ter vivido momentos com ele, de nunca ter passado um só dia ao lado dele. As pessoas falavam que ele era um excelente marceneiro, que trabalhava como um artista, que tinha método para tudo, até mesmo para bater um prego. Dizia-se também que ele foi um bom filho, que ele mesmo preparou o caixão que a mãe dele se enterrou. Que foi, segundo comentavam, uma obra de arte feita em madeira e vidro.
A minha mãe me dizia que ele era o meu pai e que eu tinha que tomar a bênção para ele e eu a obedecia prontamente. Ele, por sua vez, sempre me abençoava alegre e satisfeito. Daí a imagem boa que eu trago dele. Ele era uma pessoa de bem com a vida. Em Rosário, as pessoas com as quais eu convivia, todas falavam bem dele.
Dizem que pra tudo ele tinha uma tirada, uma saída, uma forma de se safar. Certo dia, ele estava no comércio dos Caires, na Rua de Cima (bairro de Rosário) e lá estava uma turma de rapazes bebendo. Aí ele encostou ali para bater um papo com a rapaziada e tomar uma dose de conhaque, quando um dos rapazes, só para dar uma gozada nele, perguntou: - seu Lídia, por que o senhor é tão feio assim? E ele respondeu sem pestanejar: - Eu era um rapaz bonito, sempre me vesti bem e era muito querido pelas moças da minha época, mas um dia, quando eu estava trabalhando no telhado da igreja de Nossa Senhora do Rosário, escorreguei e caí batendo a cabeça no chão de tal forma que transformou a minha fisionomia e, eu me salvei por graça da santa, mas fiquei assim, feio. Depois da explicação do seu Lídia, toda a vez que os rapazes da Rua de Cima viam alguma pessoa que reputavam como feia, exclamavam: - Hum, essa deve ter caído de cima da igreja!
De seu Lídia, diziam também que ele não falava certas palavras exatamente como elas eram grafadas. Tijolo ele chamava apenas de jolo, porque segundo falavam, ele dizia que não se tratava de um tio seu; cueca, ele chamava de eca, porque dizia não falava palavrão em público; por esse mesmo motivo quando se referia ao cuscuz, preferia chamar de duas talhadas. Nestes termos ele chegava mesmo a ter um vocabulário particular para designar certos termos existentes no nosso vocabulário.
Saí de Rosário aos 15 anos para estudar em São Luís. Não tive mais contato com o meu pai. Como entre nós não foi cultivada a proximidade, uma relação estreita entre pai e filho, a minha saída de Rosário significou uma separação para sempre. Nunca o procurei e vice-versa.
Certa vez, dia de finados, cheguei ao cemitério de Rosário para visitar a sepultura da minha mãe e, enquanto acendia velas e rezava, uma senhora idosa cuidava de uma sepultura próxima. Quando terminei de rezar eu a cumprimentei e ela falara que estava cuidando da sepultura do compadre dela, já que ele não deixara ninguém que pudesse fazer isso. E lamentava: - Logo ele que ia ao enterro de todo mundo nesta Rosário, quando morreu não tinha ninguém sequer para carregar o seu caixão. Então eu perguntei quem era o seu compadre e ela me confidenciou que se tratava do Antônio de Lídia. Fiquei mudo, não sabia o que dizer. Rezei em silêncio e ofereci as minhas orações à alma dele. Não disse a ela que era o filho dele.
Aquela sena ficou presa na minha memória para sempre. Quando o meu pai ficou velho eu já era um rapaz e, se tivesse algum contato com ele, talvez até pudesse cuidar dele, mas eu não tive a escolha e sequer soube da vida dele depois que fui embora para São Luís. A relação com o meu pai me fez depreender que na relação entre pais e filhos é necessário que se cultive a amizade, o respeito, o carinho no convívio do dia-a-dia, que façamos, um para com o outro, ações que sejam traduzidas como amor, afeição, por ambos. Caso contrário, os cuidados que foram desperdiçados ou omitidos no início farão falta no final. Nada melhor do que a oração de São Francisco para traduzir a minha conclusão. É possível que assim como a presença dele fez falta na minha vida, principalmente, durante a infância e a adolescência; a minha presença também tenha feito falta para ele em algum momento.
Antônio de Lídia, onde quer que você esteja eu desejo que o Grande Arquiteto do Universo te ilumine no Oriente onde repousa a tua benfazeja alma.
 

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segunda-feira, 22 de julho de 2013

Eu e Zé Pitó




José Ribamar Pereira dos Santos, esse era o nome de Zé Pitó. Nem me perguntem de onde vem o apelido, porque eu não sei, nunca me ocorreu a curiosidade de saber e nunca ouvi nada sobre isso nas conversas da família. Note-se que ele não era Linhares como os demais filhos os demais irmãos. Era o único que carregava o sobrenome do pai. A minha mãe e o pai dele foram casados.
Na família se falava com orgulho, que ele estudou no Colégio Maristas. Também se falava que, em Rosário, ele era passista de uma das escolas de samba; que tocou bongô e foi cantor do “Jazz 4 de Março”, a orquestra do Sr. João dos Santos, como era conhecido. Zé Pitó era o tal.
Passei a maior parte da minha infância como um menino “solitário”, tendo o Zé Pitó como um mito, algo muito distante e de muita importância para mim – o meu irmão. Quando eu nasci Zé Pitó já residia no Rio de Janeiro – era estivador marítimo como o seu pai, Ciríaco. Isso eu sempre ouvia a minha mãe dizer. Estivador marítimo era uma palavra que a minha mãe dava muita ênfase, acredito que para diferenciar de outros tipos. Mas também porque, segundo eu ouvia, estivadores marítimos eram muito importantes, seus ganhos eram, ou ainda são, os maiores da categoria. Bem, assim desde criança eu sabia a profissão do meu irmão.
Eu era criança quando Pitó foi uma vez a Rosário. Íamos banhar no rio Itapecuru e ele ficava pedindo que eu entrasse na água, mas eu tinha medo ainda. Desse tempo, as lembranças são vagas, raras. Lembro-me também que ele sempre mandava dinheiro para a minha mãe e esse dinheiro chegava pelos Correios e Telégrafos e a minha mãe recebia conforme a disponibilidade do Correio de Rosário. Isto era uma coisa muito esquisita. Meu irmão mandava, por exemplo, R$ 100,00, então chegava um aviso na nossa casa. Íamos ao Correio buscar o dinheiro, aí o chefe da agência dos Correios em Rosário dizia: - olha só tem R$ 10,00, leva esse e volta depois pra buscar mais. E assim recebíamos à prestação até completar o total. Não sei dizer se essa era uma prática da época, se era uma prática peculiar da agência de Rosário, ou se era uma prática abusiva à nossa pobreza.
Havia também as correspondências entre a minha mãe e o meu irmão. Minha mãe, Joana Batista Linhares (Joana Palitó) era uma pessoa destemida, de temperamento indócil, não dominava a escrita e sempre pedia para outras pessoas escreverem as cartas que ela dirigia ao Zé Pitó. Muitas vezes vi as pessoas constrangidas sem querer escrever os palavrões que ela dizia para colocarem nas cartas. As pessoas perguntavam: - É para colocar assim mesmo Palitó? Não é melhor trocar esta palavra? – Ela respondia sempre que tinha que ser do jeito que ela mandava porque senão ele ia pensar que não era ela que estava mandando aquela carta. O Pitó era muito paciente e tinha um respeito enorme pela minha mãe. Nunca respondia no mesmo tom, sempre era muito polido, respeitoso, carinhoso para com ela. Ela tinha orgulho disso. E sempre me contava que ele um dia escreveu-lhe uma carta elogiando as surras que ela lhe havia dado quando ele ainda morava em Rosário, nestes termos: - “Poucas e boas foram surras que a senhora me deu”. E completava dizendo que elas foram importantes para que ele aprendesse coisas que muito lhe ajudaram na vida distante da família. Ele sabia fazer todos os serviços domésticos (lavar, engomar, cozinhar) muito bem.
Para mim, Pitó era mais que um irmão, era um irmão idealizado. A distância me fez produzir na minha mente um irmão ideal. Aquele irmão do qual eu me orgulhava muito e que um dia iria voltar para suprir toda a lacuna que sua ausência deixara na minha vida. Nunca pensei numa relação igualitária com o meu irmão, mas o imaginava sempre de uma forma muito infantil, como um ser que chegaria de algum outro planeta e mudaria tudo em minha vida para melhor.
Creio que esta forma de raciocínio foi muito responsável pelos conflitos entre mim e ele. Esses conflitos sempre foram mais tácitos do que manifestos. Tinha ciúmes se via ele pagando, por exemplo, uma cerveja para um amigo. Não dizia nada, mas sempre achava que ele devia, ao invés disso, fazer alguma coisa para mim com aquela grana. E aí já ficava zangado com ele sem que ele soubesse a causa.
Foi quando eu já morava em São Luís que eu e o meu irmão nos aproximamos. Foi mais ou menos no início dos anos 1970 que Zé Pitó nos visitou em São Luís. Naquela época, vinha também um grupo de pessoas que formava a associação de maranhenses que moram no Rio de Janeiro. Numa dessas vindas, o grupo fez uma festa no Clube Montese, no bairro do João Paulo, animada pelo grupo musical “Nonato e seu Conjunto”. Nessa festa eu arranjei uma briga com a minha irmã Vilma e o Zé Pitó me mandou para casa. Fiquei possesso, mas obedeci. Afinal, ele era o irmão mais velho.
Depois, ele passou a nos visitar uma vez por ano. Quando ficou viúvo intensificou as visitas até que veio de muda.  Nesta época já havíamos fundado a Turma do Saco, na qual ele entra para comandar a bateria e ficar conhecido na cidade como mestre de bateria – maestro Zé Pitó. Na Turma do Saco, vivíamos entre tapas e beijos, eu sempre buscando o irmão por mim idealizado, ao invés de compreender o irmão real que eu tinha. Mas, o Pitó era comigo do mesmo jeito que era com a minha mãe: gentil, amigo, carinhoso.
Custei muito a compreender as nossas diferenças. Quando isto aconteceu passamos a ter uma vida mais harmoniosa. Mas, na verdade, eu o admirava muito. Sempre o imitava, fumando o cigarro que ele fumava, me vestindo como ele se vestia e até roubava as roupas dele. Eu o admirava muito, apesar toda a minha frustração pela diferença entre o irmão idealizado e o Zé Pitó de carne e osso.
A minha admiração pelo Zé Pitó chegava ao clímax quando eu o via dançando. Ele era demais. O cara sabia dançar como poucos. Dizia que foi uma mulher que lhe ensinou. Nunca soube quem foi essa mulher, mas a imagino como uma excelente professora de dança. Zé Pitó era um exímio dançarino. Lembra da festa do Montese, que ele me mandou para casa? Naquela festa, um amigo seu o desafiou. Teimava que dançava mais do que ele, então resolveram parar a festa para o tira teima. Como de costume, em momentos como esse, quando ele não tinha um par, sempre pedia licença para o seu compadre Nhô Bi para dançar com a esposa dele – a sua comadre Nitinha. Até hoje não conheci mulher que dance melhor que a Nitinha. Dada a aquiescência do compadre, Zé Pitó encarregou o concorrente de escolher os ritmos e deu a ele vantagem de começar. Como eram amigos e conhecidos de todos, as pessoas se dividiram na torcida.
Contam que o amigo do Zé Pitó iniciou a primeira dança e fez o que sabia. Dançou muito bem sob os olhos curiosos de todos que ali estavam. Terminada a parte, chegara a vez de Pitó e Nitinha. O maestro Nonato iniciou a execução da música, Pitó e Nitinha logo disseram para que estavam ali. De entrada eles fizeram um jogo de pernas que fez o Montese vir abaixo – todos que ali estavam os aplaudiram e nem precisa dizer quem foram os vencedores. Houve quem exclamasse ao concorrente: - “Te sai dessa, amigo, com Zé Pitó tu não te crias como dançarino”. Ele dançava demais. Gostava tanto de dançar que ensinou a Socorro Costa, a sua esposa, assim os dois podiam brilhar nos bailes da vida. E foi assim enquanto ele viveu.
Zé Pitó deixou para mim uma imagem de uma pessoa que sempre estava de bem com a vida. Foi viúvo por três vezes, mas nunca o vi a reclamar da vida. Gostava de cantar, tocava pandeiro como poucos. Adorava vestir-se bem. Tinha um estilo próprio que aprendeu com o Rio de Janeiro. Sapatos e calças brancas eram partes imprescindíveis do seu estilo de vestir. Zé Pitó era uma pessoa que não nasceu para o anonimato. Dificilmente chegaria num lugar para não ser notado. A voz, a roupa, a boa aparência eram ingredientes que certamente chamariam a atenção de alguém.
Sei que o que escrevo aqui não descreve a totalidade daquilo que foi o meu irmão Zé Pitó, mas é certo que esta foi a forma que encontrei para externar a minha saudade.

quinta-feira, 11 de julho de 2013

Uma música de raiz chamada toada



Mais do que por acaso, foi por boa educação que o Manoel Júnior convidou a minha família para passar a noite de São Pedro na sua belíssima fazenda.
Manoel Júnior é comerciante e pecuarista, alagoano, residente em Santa Inês. Estávamos na casa do irmão(.’.) Noilton, comemorando o aniversário da cunhada Fátima, domingo passado, quando ele, Manoel Júnior, fez o convite aos presentes. Não nos fizemos de rogados, fomos. Chegamos à fazenda por volta das oito da noite. A meninada aproveitou o espaço livre que tinha para brincar, soltar fogos e se confraternizar num bate papo animadíssimo que varou a madrugada.
Os adultos ficaram em torno de uma mesa, saboreando carne de carneiro assada, comendo deliciosos bolos de milho e de arroz, molhando a conversa com uma cerveja geladíssima. Quando sentir o ambiente, percebi que havia cometido duas faltas: não levei uma garrafa de vinho para harmonizar com aquela saborosa carne de cordeiro; não levei o banjo, quando a lua no céu, belíssima, se derramava em lirismo.
Logo a chuva de São Pedro nos tirou do terreiro, nos remetendo ao alpendre da casa. Ali não podíamos contemplar a lua, apenas a fogueira imponente que resistia acesa apesar da chuva, mas uma conversa animadíssima nos unia numa alegria singular. Enquanto conversávamos amenidades o dono da casa, quase que num cochicho, me confidenciava que gostava de ouvir toada e assim costumava fazer um pouco mais tarde. Dito e feito. A reunião de amigos que era embalada por um som vindo do carro do anfitrião, após às 11 da noite foi surpreendida por um canto forte entoado “na capela”, ou seja, sem acompanhamento instrumental, por duas pessoas que fazem primeira e segunda voz, cantando versos nordestinos numa entonação que nos envolve da alma às vísceras. Lindo! Embora, cabe mencionar, parte do público presente não o tenha entendido, e por isso o desaprovado. O que, no entanto, não diminui a beleza do canto, que o Júnior chama de toada.
Se existe música de raiz, a toada é, da música brasileira, aquela que mais está entranhada no chão nordestino e, sem dúvida, dela derivam muitas outras que cantamos sem nos dar conta da origem.
Os cantores de toada cantam o Nordeste por excelência. Nela a terra, a plantação, a água e a seca, a mulher, o homem, a família, o amor exitoso, ou a saudade, o gado, a chuva, tudo é excentricamente nordestino. Já tinha ouvido o Chico César cantar toada, mas até ontem à noite (29 de junho de 2013) não sabia que aquela música que ele cantava assim se chamava – toada. Nela, o sangue nordestino se agita numa euforia intrínseca, que em quem a ouve e a aprecia se traduz em risos e/ou lágrimas. O nordestino fica em transe viajando em pensamentos, revisitando a família, ancorando nos portos da reminiscência, preso na sua história e na história da sua terra, da sua família. Nessa viagem, passado e presente se complementam, felicidade se mistura a tantos outros sentimentos de ganhos e perdas que se transformam em risos e lágrimas num mesmo rosto, como a chuva e o sol se encontram nas terras nordestinas.
A toada está para a memória musical nordestina, como a prosa de Zé Limeira, o poeta do absurdo, está para a poesia de cordel. Nada há de tão grande que a ela não se curve, nada há de tão belo que não lhe contemple a beleza.

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