Do rouxinol que voava entre as
árvores do quintal da casa onde passei a minha infância eu só guardo a
lembrança. Se ainda existem são raros.
Há quem diga que foram substituídos pelos pardais, mas como podem os pardais substituir
os rouxinóis se destes não têm o canto, a beleza, o encanto?
Os rouxinóis são uma referência
perdida da minha infância. Não ver rouxinóis nos lugares por onde eu ando é
como chegar a Rosário e não ver a Igreja de Nossa Senhora do Rosário, onde eu
me batizei; ou me deparar com a inexistência do Grupo Escolar Joaquim Santos,
onde eu estudei o primário (hoje ensino fundamental menor).
Mas nem tudo na vida são perdas.
Durante todo o curso da minha vida ouvi o canto de um pássaro que para mim é o
mais significativo símbolo de resistência da natureza – o bem-te-vi.
O bem-te-vi é um pássaro que
carrega em si o signo da liberdade. Não atrai a atenção do homem para os
rigores da prisão domiciliar nas nefastas gaiolas utilizadas por aqueles que
habitualmente prendem pássaros para ouvir os seus cantos. Barbárie! Não
percebem eles que qualquer ser que emita um canto de boa sonoridade cantará
melhor se estiver livre, no seu habitat natural? Mas, não há do que se admirar
quando se pensa na capacidade ou nos quereres dos seres humanos. Lembro de um
professor da Escola de Agronomia do Maranhão que advertia-nos - “nós somos tudo
em potencial”.
De repente nos surpreendemos com
o canto de um pássaro que pode estar no galho de uma árvore ou no fio da rede
elétrica. Seja de onde for ele entoa o canto irretocável bem-te-viiiii.
Provavelmente, o canto do
bem-te-vi foi desde sempre a causa do desinteresse do homem em aprisioná-lo.
Creio que os adeptos do aprisionamento dos pássaros de sonoridade exuberante
ficavam desconsertados e, por isto, desconcertados, com o canto do bem-te-vi.
Quando o bem-te-vi emite o seu canto, o homem o percebe como uma acusação, como
uma desconsertante distinção por atos ecologicamente incorretos que os homens
cometem desde os primórdios.
Então para que trazer para perto
de si um pássaro que passa a vida a apontar o seu “dominador” com acusação do
tipo:
- bem-te-vi a desmatar os espaços
onde eu vivia e eu ainda resisti;
- bem-te-vi a erguer blocos de concreto
onde outrora era mata que me abrigava e alimentava, e eu resisti;
- bem-te-vi a tocar fogo na mata
abundante que abrigava a mim e outras tantas espécies e eu resisti;
- bem-te-vi a inundar as imensas
áreas verdes, afogando entes que não voam e não nadam e eu resisti;
- bem-te-vi me atirando pedras
com teus estilingues e outros projéteis com armas de fogo e eu resisti;
- bem-te-vi com os teus alçapões
a oferecer-me frutas frescas com os teus ardis e eu resisti;
Bem-te-vi, bem-te-vi,
bem-te-vi...Bem-te-vi, bem-te-vi, bem-te-vi...Bem-te-vi, bem-te-vi,
bem-te-vi...
Se há um animal que tem uma
plasticidade que historicamente lhe permite acomodar-se a um sem número de
situações criadas pelo homem, este é o bem-te-vi. Hoje o bem-te-vi se urbanizou
quase que definitivamente. Seu canto está no fio do telefone, na cobertura do
apartamento, no arbusto que decora o jardim da casa, no telhado da casa, no
terraço do apartamento.
Se pensa o homem que, com as suas ações
ecologicamente incorretas, pode perseguir o bem-te-vi, saiba que a ação ou
reação do bem-te-vi volta de ricochete, pois onde quer que esteja o homem o
bem-te-vi seguirá o acusando, entoando um canto inconfundível que para sempre
ecoará em seus ouvidos: bem-te-vi, bem-te-vi, bem-te-vi, bem-te-viiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii...
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