Se na minha infância alguém
chegasse a Rosário perguntando por dona Maria Patrícia Pereira, provavelmente,
ia perambular muito pela cidade até que chegasse à Rua de Baixo e alguém de estalo,
dissesse, Huuum! É Santinha de Careca, ou é Santinha empregada de Kleper
Aquino, ou, ainda, é Santinha que mora na Rua da Fonte do Mato!
Assim era a Rosário da minha
infância. Uma cidade em que as pessoas, com raríssimas exceções, eram
conhecidas pelos chamados nomes de casa, ou apelido. Eu por exemplo, só fui ser
Luiz Fernando, praticamente, a partir de São Luís, em Rosário, eu era o Prego,
ou Prego de Joana Palitó. A casa de Santinha era um exemplo disso: - Carlos
Diniz Pereira, pelos de casa era chamado de Dical, enquanto os da rua lhe
chamavam de Bode; Sebastião Teles de Linhares, era conhecido como Barrulhão.
Bode e Barrulhão são filhos da Santinha, primos saudosos com os quais convivi
durante toda a minha infância, agora já estão em outro plano.
Não me contentei em apenas
felicitar a Santinha pela passagem dos seus 94 anos, quis escrever mais sobre
ela porque pessoas como Santinha quando contam a sua História arrolam em sua
linha do tempo a história de uma época e de muitas outras pessoas. Santinha, a
minha mãe, Joana Palitó (Joana Batista Linhares), dona Filoca, dona Manoca,
dona Filomena, que era vizinha e prima dela (mãe do Mascau, Ubirajara, Zé Maria
e Maria José) eram de uma geração que sabia, mais do que tudo, que só no
dicionário o sucesso vem antes do trabalho suado e intenso, aditado à educação.
Como essa geração de mulheres trabalhadoras não teve a oportunidade do estudo,
trabalhava desesperadamente pelo seu sustento e para que as futuras gerações
(filhos e netos) pudessem estudar.
Santinha dedicou a sua vida
inteira ao trabalho, como disse, na minha infância eu vivia entre o quintal da
sua casa e o campo do Esporte Clube Comercial, time pelo qual eu torcia. Não me
lembro de ter visto uma só vez dona Maria Patrícia Pereira em algum tipo de
diversão. As minhas lembranças de Santinha passam muito pelo fato de vê-la
passando pelas calçadas altas do Grupo Escolar Joaquim Santos indo ou voltando
do trabalho. Adorava ir aos sábados, domingos e feriados na sua casa quando ela
lá estava, pois ela é dona de um paladar que grandes chiefs de cozinha de hoje invejariam.
Mulher de um coração bondoso,
caridoso, capaz de dividir o pouco que tem com parentes, amigos, vizinhos. A
geração de Santinha também tem a sublime marca do parentesco por consideração,
por essa e outras, que quando falamos dela, contamos também um pouco da vida de
outras pessoas e da nossa própria história. Afinal são noventa e quatro anos de
vida.
Quero aqui, de modo singelo, para
além de felicitar, agradecer Santinha, uma vez que ela também contribuiu para a
minha educação, como a minha mãe também deve ter contribuído para a educação de
alguns dos seus filhos. Era costume naquela época os parentes se importarem com
a vida da gente de forma proativa. Se um parente, um tio, uma pessoa mais velha
via uma criança na rua, logo perguntava: - seus pais sabem que você está aqui?
Se a criança estava indevidamente em determinado lugar, nem respondia, botava o
rabo entre as pernas e debandava. Se viam crianças brigando, não só apartavam,
como ralhavam para que soubessem que aquilo não era certo. Dessa forma,
contribuíam para a nossa educação, pois só as nossas mães não davam conta,
porque tinham uma jornada de trabalho longa, cansativa, passavam a maior parte
do dia trabalhando. Sou filho de mãe solteira e pude experimentar isso durante
toda a minha infância. Sei como essas intervenções na vida da gente eram
necessárias. A mim ensinaram a nutrir o respeito pelos mais velhos, a enxergar
que as coisas não se resolvem só pela força, pela briga, pelo conflito, a
importância das palavras mágicas: - bom dia, boa tarde, boa noite, muito
obrigado, com licença... Santinha, foi com a sua geração que eu aprendi que ser
educado e pacífico, não significa ser submisso e passivo; que pedir licença ao
outro não significa colocar na sua mão o nosso direito de ir e vir. Por isso,
as pessoas oriundas da nossa classe, nesse Brasil marcado pela escravatura, têm
que saber pedir licença com delicadeza e, simultaneamente, usar o cotovelo para
abrir o caminho.
Enfim, Santinha, sei do quanto
muitas vezes você usou da sua bravura para deixar claro aos seus interlocutores
que você estava ali e que não seria boa opção tentar passar por cima de você.
Isso se chamava de valentia, mas em você essa qualidade só era acionada na hora
certa.
Essas lições ficaram comigo para
a vida inteira e às vezes sinto-me replicando as suas atitudes, as atitudes de
Joana Palitó, ou de outras trabalhadoras da sua época, quando me vejo diante de
algum interlocutor obrigado a lhe avisar que: “estou vestido de lã, mas não sou
carneiro”. Você sabe muito bem em que ocasião tem que acionar estes artifícios
de defesa.
Minha querida Santinha, tenho certeza que esses
94 anos de idade fazem parte do patrimônio que o Altíssimo a ti destina como
recompensa pela vida de trabalho e dignidade pela qual optaste desde sempre.
Tomara que algum dos meus primos, seus filhos, leiam essa pequena homenagem que
fiz para você. Se isto acontecer, peço-lhe que feche os olhos e sinta o meu
carinhoso abraço. Obrigado por comentar.
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