domingo, 14 de junho de 2009

A decepcionista

Lá está ela no consultório médico. Age sempre como se fosse uma estrela, impondo uma formalidade que perde o feitio toda a vez que a voz dela fere os ouvidos dos clientes.
Pede que as senhoras falem em voz alta aquilo que elas mais detestam falar em público – o peso, a idade, a altura. Imaginem a cara daquelas em que a idade já vai além dos 30, as gordas e as de altura menor que um metro e meio.
Coitados dos anciãos que não entenderem ou confundirem uma informação qualquer. Se irritados ela sempre lhes solicita, em alta voz, que tenham calma. Calma é tudo que um ser humano que está se contorcendo de dor e carente de atendimento imediato detestaria ouvir.
Imaginem como soa aos ouvidos de uma pessoa, num consultório médico repleto de clientes, quando uma decepcionista pergunta: - qual é a sua altura? E ela tem que responder, - um metro e trinta.
Assisti uma vez uma secretária trapalhona teimar com um cliente que ele não lhe entregara o formulário de autorização de um exame ergométrico. O paciente dotado de uma fleuma britânica, lembrava que havia deixado com ela o tal papel, entretanto ela o dirigia um olhar de plena desconfiança e perguntava cheia de autoridade: - O senhor não levou a requisição do exame para casa?
- Não, respondia ele, sempre com firmeza e educação.
No entanto, depois de fazê-lo andar por vários cantos do hospital feito uma barata tonta, procurando alguma autoridade que lhe garantisse a realização do tal exame naquela data, uma vez que ele morava num outro estado distante dali, ela lhe aparece com uma cara de santa sacana e lhe diz: - seu Miguel, não é que a minha colega chegou e achou a guia da requisição do seu exame, dentro do meu arquivo!? De pronto uma outra decepcionista perguntou-lhe: - como? E ela respondeu, - não sei colega...
O Sr. Miguel, coitado, ficou com uma cara que era um misto de decepção e perplexidade e contentou-se em marcar o tal exame para outra data. Certamente, a decepcionista nem imaginou que aquele seu pequeno engano significara para o seu Miguel mais uma viagem, mais despesas, mais cansaço, além de afastamento dos seus compromissos profissionais.
As decepcionistas são assim: formadas, treinadas e até monitoradas para atenderem as pessoas. Ocupam lugar de destaque nas salas de atendimento das organizações (onde numa placa vê-se escrita a palavra RECEPÇÃO), têm status de carro chefe, mas no DNA têm um quê de embaraço, trapalhada e decepção.
Dez mil cursos de relacionamento interpessoal lhes sejam ministrados, cem mil livros de etiqueta lhes sejam disponibilizados e elas continuarão do mesmo jeito – atabalhoadas e carentes de boas maneiras.Se contratadas, Glorinha Kalil, Danuza Leão, Cláudia Matarazzo e outras tantas do ramo, para dar aulas de boas maneiras a uma boa decepcionista, com certeza, ao término do curso, esta estaria com os mesmos modos, e aquelas iriam direto para o hospício.

sábado, 30 de maio de 2009

A musicalidade de um genial Dico Baiacu

Quem via aquele senhor calefatando canoas em Rosário, à beira do rio Itapecuru, pensava se tratar de um simples carpinteiro naval, como tantos outros nascidos ali. Baixinho de porte atarracado o que, por certo lhe valeu o apelido – Dico Baiacu. O Dico deriva do nome Raimundo, cujo diminutivo popular seria Mundico e para os mais chegados apenas Dico. Baiacu, acredito ser uma alusão comparativa e, claro, caricata da comparação da expressão corporal com o peixe que tem este nome e é comum nos mares do Maranhão, nas proximidades de Rosário.
Mestre na arte da construção de pequenas embarcações tinha uma vida simples como todo rosariense daquela época. Dedicava-se ao ofício durante a semana. Como era um autônomo, entre um trabalho e outro costumava pescar de espinhel, para pegar mandubé, bico de pato, papista, piau e outros peixes característicos do então piscoso rio Itapecuru-mirim.
Nos finais de semana, porém, sua aptidão musical aflorava. Descia a Rua de Baixo, ia lá para as bandas do Alto Paraíso, lá pra perto da capela de São Benedito da Garrafa, onde se juntava a outros companheiros amantes do bom samba rosariense e, ali na escola de samba faziam as mais lindas pérolas musicais que Rosário já conheceu.
Nativista por excelência, como bom rosariense cantou a terrinha no mais alto estilo:

Rosário,
Ó meu Rosário
Terra de grande valor
Rosário,
Ó meu Rosário
Terra que Deus abençoou

Para ele a beleza global de Rosário era em decorrência das suas maravilhosas partes. Isto ele deixa bem claro ao cantar um certo Bairro da Princesa. Várias vezes ouvi as pessoas cantando este samba, mas, confesso não saber exatamente qual é a parte que o mestre assim chamava.

Você quer vê
O que é que é beleza
É só descer
Ir pro Bairro da Princesa

Sei, porém que para ele e outros sambistas da época o Bairro da Princesa era o lugar do mais fino samba rosariense. Um lugar onde a boemia se instalara e proliferara – o berço da boemia rosariense. Era ali naquele meio, onde tudo era simples brincadeira, que Dico Baiacu se sobressaia como um verdadeiro gênio da música popular rosariense. Foi naquele ambiente, entre os Amigos do Samba que ele fez o primeiro samba ecológico em defesa da palmeira do babaçu, do meio ambiente, a favor da preservação da agricultura tradicional de Rosário e contra a colonização japonesa naquelas terras, naquela época – acredito que entre segunda metade dos anos 1950 e início dos anos 1960.
É verdade que o samba é de uma força de expressão tamanha que de pronto foi proibido pela autoridade maior da terra – Ivar Saldanha. Ivar como político experiente que era, um homem sensível e sobretudo educado, logo viu que o tratamento dado aos irmãos nipônicos não era de bom alvitre, mas, até hoje, não há quem não se lembre na Rua de Baixo o samba que deixou entre nós a fama do seu autor.
Em respeito à comunidade japonesa eu deixo de colocar a letra integralmente, mas, por ser também um símbolo tão significativo da história do povo rosariense eu cometeria pecado de semelhante magnitude se deixasse aqui de mencionar alguma parte deste samba. Portanto, apresento as minhas desculpas à comunidade japonesa no Brasil e aos seus descendentes.
Vejam, Dico Baiacu é um autor que a exemplo de Dorival Caimmi, João do Vale e tantos outros ícones da música popular brasileira, tinha no amor telúrico uma das suas principais fontes de inspiração. Este samba é uma verdadeira demonstração de amor pela terra rosariense, seus recursos naturais e os nossos conterrâneos.

Era só o que faltava em nossa terra...
Mas, agora desta vez
Vai haver um sururu
Estão derrubando as palmeiras
E acabando o babaçu

Não temos mais o direito
De ganhar o nosso pão
....grita de lá
Aqui não se mete mais a mão

Enfim, o nosso Raimundo Brito, Dico Baiacu, carregava o talento musical desde a barriga da sua genitora, mas, não se contentara com isso, resolveu aprender as técnicas da música. Para isso entrou na escola de música de João Agripino dos Santos – o nosso saudoso e inteligentíssimo João dos Santos. Lá aprendeu os pormenores das notas musicais, chegando mesmo a tocar tuba no Jazz 4 de Março.
Seu Dico compôs um conjunto de excelentes sambas, mas não há registro escrito e, muito menos, fonográfico. No entanto, Rosário é uma terra sensível à cultura telúrica, por isso eu pergunto se já não era hora de catalogarmos a obra deste grande compositor da nossa terra e fazermos um registro fonográfico para que as novas e futuras gerações possam conhecer melhor a História da música rosariense?Creio que seguindo o caminho da memória oral daquelas pessoas que foram contemporâneas do compositor seria um bom caminho.
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sexta-feira, 22 de maio de 2009

O boi Mim

Lá vem pelo meio da rua, em plena manhã aquele bando de homens com um boizinho de buriti coberto de veludo e bordado com miçangas e canutilhos, uma lamparina acesa na ponta de uma vara e uma afinada orquestra tocando. Na frente, o amo do boi segurando numa das mãos o boi pequenino e dançando, ia de um lado ao outro da rua, enquanto todos cantavam a doada do boi, que era uma só:

Eu vim de São Simão
E vou pro Itamirim
Quem quiser ganhar dinheiro
Vem dançar debaixo de mim

Toda cidade já conhecia – era o boi Mim, encabeçado por um grupo de amigos, todos com mais de cinqüenta anos de idade, entre os quais se destacavam, Cesário Rezzo, Filinto de dona Canjoca, Zé Miranda, Joaquim Coelho e uma plêiade de amigos conhecidíssimos em Rosário.
Ali na terra onde o boi de orquestra foi inventado, o boi Mim era mais uma brincadeira do gênero que surgira para fazer aquela terra mais alegre. Era uma brincadeira muito bonita, de originalidade sem igual.
Não tinha fantasia, não tinha ensaio, era uma brincadeira feita só de alegria e amizade. Todos ali eram amigos, gostavam de uma boa e geladíssima cerveja e viviam se encontrando na residência de alguns deles para bebemorar qualquer coisa.
A casa de Cesário Rezzo foi locos de muitas reuniões dessa turma. Sempre que eles se reuniam, dona Rosa de Cesário convidava a minha mãe, Joana Palitó, para dar uma ajuda na cozinha.
Cesário Rezzo tinha descendência sírio-libanesa, razão pela qual, creio, as reuniões eram sempre fartas de quibe e outros quitutes do gênero. Eu acompanhava sempre a minha mãe nessas ocasiões. Lembro da casa ampla, longa, de cômodos amplos e quintal comprido que chegava até a rua onde fica a vacaria dele.
Cesário Rezzo era homem de poucas palavras, de aparência sóbria, valente, corajoso, trabalhador, empreendedor e muito respeitado. Quem o visse no quotidiano do seu trabalho, jamais o pensava como uma pessoa tão alegre e generosa, dado a participar de brincadeiras como o boi Mim.
Todos os participantes eram pessoas respeitadas da sociedade rosariense. Provavelmente, na volta do trabalho, se encontravam na Praça da Matriz, no quiosque de Caetano e, depois das duas primeiras dúzias da gelada, chamavam o primeiro menino que passasse e diziam: - menino tu és filho de quem?Sabe onde é a casa de Carambanja? Vai lá e diz que venha aqui no botequim do Caetano falar com Joaquim Coelho, mas, diz pra ele trazer o banjo, que a conversa é muito séria. As risadas não faltavam, é claro. E logo, se passava alguém em rumo a praça do mercado, diziam: - amigo, por favor, já que você vai pra aquelas bandas, passa lá casa do Zé Serra e diz que ele venha aqui depressinha falar uma coisa séria com o Cesário Rezzo, mas, pra ele não esquecer do piston.
Evidente que podiam ser outros músicos, o certo é que num piscar de olhos, não se sabia bem de onde, saía o boi Mim. Mas, Rosário tem dessas coisas, o povo vive sempre a inventar coisas novas. Novas formas de divertimento que reproduzem o alegre e criativo espírito rosariense.Certo é, que infelizmente, brincadeiras como o boi Mim, o pastor de dona Rosa Viana, os grupos de dançantes do pela porco, o tambor de mina de Faustino Rayol e Sebastião Pimenta Longa, o bloco do João Roliço e tantas outras brincadeiras representativas típicas do espírito divertido do povo rosariense, passaram assim como os seus criadores. Mas, com a dinâmica que tem a nossa cidade, estou certo de que novas formas de divertimentos foram criadas. E como não poderia deixar de ser, Rosário se eterniza como uma cidade de gente alegre, brincalhona, hospitaleira, que acima de tudo, não abre mão da sua rosariensinidade.

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domingo, 10 de maio de 2009

Rosário está sim na história universal do marketing

Pouco se fala neste caso, mas trata-se de um dos mais emblemáticos casos do marketing universal, embora tenha ocorrido ali naquele interior maranhense pertinho da capital.
No interregno entre os anos de 1950 e 1960, a cidade de Rosário era dividida popularmente em duas partes – Rua de Baixo e Rua de Cima. O divisor desses bairros era a Avenida do cemitério, cuja ponta inicial já era considerada Rua de Cima e a delegacia de polícia que ficava no outro extremo, pertencia à Rua de Baixo. No meio ficava a zona do baixo meretrício, que pertencia aos dois bairros.
Os comércios mais importantes da cidade eram: na Rua de Cima, A Casa Aragão, pertencente à família Aragão; e na Rua de Baixo, a Casa Siló, cujos donos eram os Aquino.
O Rio Itapecuru mirim dividia o município praticamente ao meio. A cidade de Rosário fica à margem esquerda do rio e, do outro lado, vários povoados estão situados: São Simão, Itamirim, Nambuaçu, Lentel, Bom Tempo, Taboca, Pirangi e muitos outros, que de acordo com a geografia atual, nem pertencem mais ao município.
No outro lado do rio, entre São Simão e Bom Tempo, havia um velho ferreiro, que na sua precária oficina forjava instrumentos metálicos e os vendias nos finais de semana na Rua, como costumavam os interioranos denominar a cidade.
Este era o costume em todos os povoados: nos finais de semana, notadamente, aos sábados, cada trabalhador pegava parte do que produzia e ia até à cidade vender e, quando de lá voltava, trazia as mercadorias que precisasse.
Saíam dos lugares onde residiam e chegavam à Prata, como era chamado o Povoado que ficava logo na outra margem do rio e atravessavam em canoas.
Naquele sábado, o velho ferreiro chegou à Rampa da Cadeia às cinco da manhã. Esperou o dia clarear, e como naquela época o comércio abria as portas bem cedo, justamente, no afã de atender a clientela vinda do interior, o Velho, como era conhecido, dirigiu-se à Casa Siló e ofereceu um saco de chocalhos que fizera em sua oficina.
Mas, um dos filhos do velho Siló que estava atendendo no balcão perguntou o preço e o Velho disse, mas, ele querendo comprar por um preço muito mais baixo, disse que não queria, porque chocalho era uma mercadoria que ninguém procurava ali.
O Velho não desanimou e foi para a Rua de Cima, oferecer os tais chocalhos na Casa Aragão, mas, aquele parecia não ser um dia de sorte para o velho ferreiro. Logo que ofereceu o saco de chocalhos, o Zé Aragão sequer perguntou o preço e foi logo dizendo: - Ah, Velho isso ninguém procura aqui, vai lá na Rua de Baixo, na Casa Siló, quem sabe o Kleper até compre uns só para experimentar.
Mas, o Velho, que já tinha passado pela Casa Siló, nada disse, e como ainda era muito cedo para voltar pra casa, foi para a Rampa da Cadeia, aonde todos que vinham do outro lado do rio desembarcavam.
Ali toda canoa que chegava o Velho perguntava, amigo/a você vai pra onde? E se a pessoa respondia que ia para a Rua de Baixo ele dizia: - me faz um favor, passa na Casa Siló e pergunta se lá tem chocalho pra vender. Se a pessoa dizia que ia pra Rua de Cima, o Velho pedia que ela fosse até a Casa Aragão e perguntasse se ali tinha chocalhos. Das oito da manhã até as quatro horas da tarde, na Rampa da Cadeia não desembarcara ninguém que não fosse abordado pelo Velho, que educadamente, pedia sempre o mesmo favor.
Toda pessoa que retornava das compras e vendas dava sempre a mesma informação para o ferreiro: - Velho lá não tem não. Outros, até brincavam com ele, dizendo: - Velho agora você vai ficar mesmo sem chocalho, mas, não tem nada não, nós já te conhecemos pelo chifre. O rosariense é dado a esse tipo de prosa, que sempre é seguida de fartas gargalhadas.
Por outro lado, os informantes falavam também do modo como os comerciantes lamentavam quando eram perguntados sobre a existência de chocalhos.
Lá pelas quatro da tarde, o Velho chegou à Casa Siló, mas desta vez, só levava a metade dos chocalhos. Logo que o balconista o viu foi logo dizendo: - Velho onde foi que você se escondeu? Ele foi de pronto respondendo: Ah, eu vendi minha mercadoria toda logo de manhã cedinho e, como a procura tava demais, eu voltei em casa para buscar mais, já vendi uma parte e sobrou esta que eu vim oferecer aqui, mas, tem uma coisa, agora o preço é outro, porque eu já tive muito trabalho pra trazer esta outra parte. Mas, o balconista nem barganhou, apenas, brincou, dizendo: Ô Velho ladrão!
Logo que fez a venda, o Velho comprou parte da mercadoria que precisava, passou na Rampa da Cadeia, deixou com um amigo e pegou o resto dos chocalhos e foi pra Rua de Cima. Ao chegar à Casa Aragão, um balconista que o conhecia demais, foi logo brincando com ele: - Velho fidumaégua, em que buraco você se enfiou? Seu Zé procurou por ti o dia todo... o que já veio aqui de gente querendo comprar chocalho...me diz quantos tem aí e eu nem vou discutir o preço.
O Velho teve o mesmo procedimento. Vendeu tudo pelo preço que quis, comprou o que lhe faltava e foi-se embora, pensando: - Poxa! Se eu não fosse esperto, minha velha ia ficar sem o vestido pra dançar o pela porco em São Simão...Não resta dúvida que o rosariense Velho foi um dos principais precursores da propaganda indutora da demanda de um produto. E como tal, se este fato tivesse acontecido em nossos dias, ele não iria mais trabalhar como ferreiro, porque não sobraria tempo para isso. Seriam tantos os convites para palestras, que ele seria presença garantida em universidades como Harvard, Oxford, USP, Califórnia, São Francisco e tantas outras.
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